Génesis
Pertenço a uma notável linhagem de marinheiros — Noé foi meu antepassado. Desde então, o acaso, ou o destino, sucessivamente degeneraram o sangue, fazendo surgir, algures na segunda metade do século XVII, o pirata Gabriel Loff. Menciona-o Charles Johnson na sua história da pirataria (A General History of the Robberies and Murders of the most notorious Pyrates, Vol. II, 1726). Sabemos, desse modo, que foi um dos associados do infame William Kidd, capitão do Adventure Galley. A existência terrena de Gabriel Loff findou no dia 23 de Maio de 1701, em Londres, já que o Almirantado Britânico não teve dúvidas em condená-lo à morte, juntamente com Kidd e outros, por pirataria (sobreviveu o registo do julgamento deste bando de corsários: The Arraignment, Tryal, and Condemnation of Captain William Kidd for Murther and Piracy, 1701). É pois graças aos arquivos da Royal Navy que o ouvimos defender-se das invectivas dos acusadores. Exprime-se num inglês de tom indefinível. Tem uma voz arrastada a granulosa. Também o vemos a descer os degraus da Execution Dock para logo depois subir os do patíbulo. Com a corda envolta no pescoço finalmente estremece. E de imediato é arrastado para muito longe, revendo-se numa instável sucessão de imagens: na praia, muito jovem, entre a equipagem de uma galé, vigiando o horizonte do mar; escondendo-se entre fardos de cana-de-açúcar, escapando às fúrias do progenitor; diante daquele rosto sem vida e com um punhal nas mãos ensanguentadas; abandonando a filha do comerciante de tabaco, apartando-se para sempre daqueles negros cabelos.
Alguém que assiste às execuções atira uma maçã roída ao Tamisa. O resto da maçã acaba por ser levado pela corrente. Gabriel distingue a delicada esteira desse ponto que se afasta na água. E foi esta a última imagem que os seus olhos viram. Abre-se o estrado e ouve-se um esticão. Pouco depois o corpo suspenso baloiça. A plebe uiva e aplaude.
Cem anos mais tarde nasce em Lisboa Luís Loff, tetraneto de um pirata. Como o avô paterno em tempos idos tinha mercadejado pelo arquipélago de Cabo Verde, Luís Loff cedo resolve partir rumo às ilhas do sul. Os descendentes prosperaram. Terão conduzido os negócios eficazmente, perpetrando, com certeza, as suas traficâncias, as suas torpezas. Envolvidos na gestão e transporte marítimo de mercadorias, no comércio de escravos e de sal, dedicavam-se, então, à pirataria, a uma espécie de pirataria benigna, perfeitamente estabelecida e aceite pela sociedade insular da época.
Novo testamento
Como podia eu, caro leitor, escapar a todo este passado? De facto, sempre me seduziu a pirataria: a figura do pirata, o navio insurrecto, a visão do mar e das águas transparentes, a ilha tropical e a floresta inexplorada, o tesouro, a infinita imagem do tesouro. As aventuras marítimas agitam os corações, sabemos disso. Diz Ernst Jünger que quando sonhamos em ir para o mar ou para a tribo dos índios é uma nostalgia, uma recordação primitiva, que desperta em nós. Não será irrelevante trocar o espaço da terra pelo espaço do oceano, pelo elemento líquido, continuamente mutável. Não será irrelevante abandonar a cidade e a sociedade, as fábricas, os campos, as geometrias terrestres e o tempo das torres das igrejas. E há algo de iniciático em enfrentar monstros e tempestades e os abismos das profundezas. Mas a pobre e ignorante cabeça do marinheiro tudo mistura e confunde. Mitos, fábulas, vagas imagens, povoam a mente daquele que pela primeira vez pisa um convés para depois atravessar a barra do porto de abrigo.
Pois bem, fui esse marinheiro, marinheiro-biólogo, quando pisei o convés dos pequenos barcos açorianos da pesca do atum. Durante um mês, vivi a bordo desses atuneiros como observador de pescas. Mais tarde embarquei nos navios da pesca longínqua que operam nos grandes bancos da Terra Nova, ao largo do Canadá. Com funções semelhantes tenho viajado todos os anos, desde 2012, nos decrépitos arrastões portugueses. Testemunho o que resta da «epopeia» da pesca, da «lendária» faina do bacalhau nos mares da Terra Nova.
Nos dias de hoje, apesar da pesca ser apertadamente regulada e fiscalizada, é no pescador que subsiste o antigo delírio do pirata. Não se apagou a atracção exercida pelo ouro (o valioso peixe do fundo) e pelo absurdo uso que dele pode fazer. E não é o ouro o leito da serpente?
Durante meses a fio, sem ir a terra, os navios de pesca arrastam ininterruptamente os seus aparelhos pelo fundo do mar. Dessa rotina infernal, sobressaem as fraquezas e menos as virtudes dos homens — apuram-se as invejas e os rancores. Um navio de pesca é uma unidade industrial flutuante cujo fim é o lucro. Este engenho hostil quebra e embrutece o pescador. Submete-se a um trabalho sem fim, repetitivo e extenuante. Arrisca a vida nas perigosas manobras de pesca que se desenrolam no convés. Os acidentes são comuns. A morte ronda por perto. Todavia, por vezes, acabam por transparecer as fraternidades e as façanhas e talvez algo genuinamente heróico, não refreado pela razão. O marinheiro-pescador lança-se ao mar porque deseja libertar-se da miséria ou, eventualmente, da sensaboria da vida. Foge de terra porque deseja ser livre. Vê-se no mar e percebe que está preso.
Mas onde se encontram as singulares aventuras que acompanham os navios? Na verdade, não guardo um episódio digno de nota. Deparei-me com mares alterosos, mas nunca enfrentei uma tempestade. Assisti a violentas rixas e testemunhei o que quase chegou a ser um motim. E, no entanto, não encontro personagens ou histórias que mereçam referência. Um navio de arrasto não é propriamente uma elegante escuna em viagem pelas ilhas do Pacífico Sul. É uma máquina brutal e ruidosa, atulhada com os aprestos da pesca. Não atravessa as águas límpidas dos atóis. Opera nos gélidos mares do Atlântico Noroeste, onde tudo é nevoeiro e onde tudo é cinzento. O mar da Terra Nova é aos meus olhos demasiadamente real. É o mar frio e salino, o mar brumoso onde não se acham os belos e terríveis fantasmas de Melville, Poe, Stevenson ou Conrad. And yet, and yet… Uma ligeira brisa faz voar flocos de neve de encontro à vigia da minha cabine. A superfície da água parece formar uma fina membrana argêntea e daí talvez se desprenda um vago encanto.
A viagem ao mar ocorre, então, não no domínio do factual, mas no reino das imagens — imagens ficcionais, imagens literárias, imagens da imaginação. Seremos, num qualquer porvir, Ismael a bordo do Pequod ou Jonas engolido por uma baleia.
O peixe
Apesar de tudo, caro leitor, assinalo o evento mais insólito e inacreditável que vivi nestes últimos anos de mar. Trata-se de um episódio real, isento de imposturas.
Em Setembro de 1938, a bordo do navio Nieuw Amsterdam que seguia de Boulogne para Nova York encontra-se a mais bela mulher alemã, judia, fugindo ao casamento com um banqueiro austríaco. Aproxima-se dos varandins da penúltima coberta e arremessa ao mar um inestimável anel de diamantes (Thomas Mann, também ele passageiro, não se apercebeu da ocorrência). Pelas mesmas longitudes, em Setembro de 2014, a bordo do navio Santa Mafalda, encontro-me a medir e a pesar um grande peixe (um bacalhau). Abro-lhe o ventre e qual não é o meu espanto quando não havia nenhum anel de diamantes lá dentro. Assombrosa coincidência que jamais esquecerei e que para sempre me perseguirá.
Imagem de Henrique Loff Silva. Edição de Tiago Cravidão.