Naquela manhã, sentaram-se todas à mesa: a Laurinha, dona da mercearia que tocava violão em noites de baile na aldeia; a Violina “Marreca”, que ficou vergada aos seis anos, mas que sempre trabalhou para se sustentar a si e à irmã. Ou a Piedade, mulher do campo, a quem José Craveiro, último contador de histórias (também) em velórios, conseguiu furtar um sorriso quando se despedia do marido já morto.
No pátio deste guardião de contos, há histórias construídas em conversas intemporais, há o cheiro a terra molhada, há o sabor a funcho e a saramago, há, sobretudo, o doce alvoroço da infância curiosa, ávida de histórias e de ternura.
Nasceu há 66 numa aldeia perto de Tentúgal, onde ainda mora, numa região rica em rezas, ditos, provérbios e rituais. Aos seis anos já comprava ovos de porta em porta que depois os pais revendiam numa confeitaria de Coimbra. E colecionava histórias. As mesmas que conta por esse país fora e que nos contou à mesa do pátio da casa onde cresceu.
José Craveiro tem necessidade de perceber o mundo, cristalizando o tempo em palavras, ainda que, como escreveu António Manuel Pina, sinta “o presente desvanecendo-se, o passado cada vez mais lento”. Mas neste homem, apesar das mãos calejadas pelo trabalho e das marcas que rompem o rosto, existe o espanto súbito da primeira vez. E sempre que conta um conto, é o pequeno Zé que regressa.
Quando é que começou a contar histórias?
Em casa da minha avó não havia rádio ou televisão. Nem sequer havia luz elétrica e, ao serão, quando não havia conversa, contávamos histórias. Depois ela veio viver para nossa casa por causa da idade e sempre que aparecia alguém, pediam-lhe : “Ó Ti Encarnação, conte lá uma história”. Ela contava, mas depois passava-me a palavra. Na verdade, foi-me empurrando sempre. Estava a preparar-me sem eu dar conta.
Preparou-o tão bem que um dia recebeu o convite da Câmara de Montemor para ir contar histórias.
Sim. Quando aconteceram as primeiras Palavras Andarilhas [um dos maiores encontros nacionais de promoção da leitura e da narração oral], o Prof. Fernando Ramos, que era vereador da Cultura, obrigou-me — porque foi mesmo assim — a ir a Beja. Havia lá pessoas com cursos de animação, cursos de teatro… O que é que eu ia lá fazer? Ele percebeu que eu gostava muito de etnografia, que gostava muito da cultura popular — lia todas as histórias, porque gostava muito. Insistiu e eu fui. Gostei. Depois convidaram-me para Associação de Contadores de Histórias.
O seu pai tinha uma taberna/mercearia?
O meu pai teve uma taberna e foi nessa taberna que se deu o começo de tudo. O meu esticar de asas.
Porquê?
Porque aquela taberna tinha como proprietária, nos anos 50 ou até antes, a Laurinha, que era um doce de senhora, uma mulher que tocava violão enquanto os músicos iam cear para o baile continuar. No tempo em que os bailes eram realmente uma diversão e também um local de encontro. E então a Laurinha tinha uma loja, que era uma taberna/mercearia. Toda a gente frequentava aquela casa. Quando a Laurinha morreu — ela foi a primeira pessoa a dar-me uma bola quando eu tinha 5 anos, quando havia muitos meninos ricos que não tinham uma bola… Quando a senhora morreu, o meu pai tomou a casa de trespasse. E com aqueles conhecimentos que tínhamos de ir a casa de toda a gente comprar ovos, a casa continuou com aquele carisma que tinha. Vinham pessoas muito humildes, mas vinham pessoas também com alguma instrução e, às vezes, juntavam-se ali grupos de pessoas interessantíssimos. Alguns cantavam. E quando não se cantava, falava-se. E vinham aquelas pessoas que, ou pela idade, ou pela doença, ou por estarem sozinhas em casa quando toda a gente estava no campo, iam para ali. Quando não havia nada para fazer, contavam-me histórias.
Que idade teria nessa altura?
Eu teria oito anos. Mas a minha escola de criança foi a comprar ovos, que eram depois vendidos a Joaquim Mendes da Fonseca, da Confeitaria Conímbriga, da Rua da Moeda (Coimbra). Ganhava um escudo em casa dúzia de ovos. Os meus pais eram extremamente pobres, embora os meus avós tivessem tido posses. A minha avó paterna teve dois moinhos na 2. ª Guerra Mundial. O vizinho, só com um moinho, enriqueceu e os meus avós estavam cada vez mais pobres. Sempre lhes agradeci isso.
Agradeceu o facto de terem empobrecido?
Sim, eles empobreceram porque a fome dos outros também os incomodava. Eu e a minha avó falávamos como se fossemos dois amigos da mesma idade. E a minha avó começou a contar-me, de pequeno, algumas coisas. “Podes achar estranho nós não termos quase nada, mas uns terem tudo e outros não terem nada é complicado; um ter a mesa farta até estragar e o outro querer uma migalha e não ter é muito chato”. Depois o meu avô contou-me que chegou a guardar todas as sementes de abóbora ou de feijão de que não precisavam para comer para moer e fazer farinha. Quando um pobre ia lá buscar farinha — às vezes, a única solução era fazer umas papas, a que juntavam ervas do campo como funcho ou saramago —, ele dava-lhe esses bocadinhos de farinha de feijão, farinha de fava ou farinha de semente de abóbora. Enquanto isso, os vizinhos inflacionavam a farinha no tempo da guerra e os meus avós, pelo contrário, repartiam algum para que as pessoas pudessem comer.
Como mantém tão viva a sua memória?
Eu penso que é o exercício. E como sou um adepto da medicina tradicional, penso que isso tem ajudado a minha memória.
Também aprendeu com a sua avó?
Eu aprendi com a minha avó por um motivo: porque tudo o que ela fazia me seduzia. A minha avó Encarnação ainda hoje é o meu ídolo. Fizemos um trato antes de ela morrer: não nos desligávamos, ela só ia à minha frente. O tempo estava fora de questão, iríamos estar de novo juntos e depois diríamos aquilo que nunca dissemos.
De certa forma, as histórias que conta são uma forma de se sentir ligado a ela?
Sim. Ela foi tudo para mim.
Foi dos últimos contadores de histórias em velórios.
Era habitual contar-se histórias nos velórios. Só depois da I Grande Guerra é que isso começou a desaparecer. Mas aqui fazia-se. Depois da meia-noite, 1 da manhã, acabava-se o vaivém de pessoas para o velório e restavam os que ficavam a fazer a noite. Ora, era preciso matar o tempo. Por isso é que aparecem muitas histórias que foram factos reais, coisas que aconteceram na realidade. Ajudavam a passar o tempo
Mas que histórias contavam? Foi o último contador?
Fui o último e sei onde foi. Havia aqui uma senhora, na Póvoa de Santa Cristina, que foi onde eu nasci, que era a Ti Piedade. Quando a minha mãe tinha que ir para o campo trabalhar e a Ti Piedade andava a cozer a broa — que era tarefa para pelo menos meio-dia — a minha mãe deixava-me lá e ficava descansada. A Ti Piedade foi uma mestra em tudo e quando o marido morreu, eu cheguei à noite e disse-lhe: “eu vou passar aqui a noite, mas quero pagar uma dívida”. “O que é que tu queres dizer com isso?” “Quero agradecer tudo que fizeram por mim e, por isso, daqui a um bocado tenho que lhe provocar um sorriso”. Ela olhou para mim e disse: “Ó rapaz, tem juízo!” Eram para aí duas e tal da manhã, sentei-me ao pé dela, contei-lhe uma história que também se tinha passado num velório, e no final da história ela estava tão levada na conversa que se riu e disse: “Malvado! Ganhaste!”. Senti-me com a dívida saldada.
Conta histórias aos seus netos?
Conto aos meus netos mas, por exemplo, nós estamos a almoçar ou a jantar todos juntos e há sempre muita conversa. Eles têm as novas tecnologias que os seduzem e nós temos que tirar proveito sem forçar. Mas, eles têm um prejuízo colossal: não conheceram os velhos que eu conheci.
Nunca pensou em deixar as suas histórias escritas?
Estão todas gravadas, pelo menos as que eu me lembrei. Estão a ser estudadas na Universidade do Algarve e uma já está publicada no Dicionário de Contos Populares Portugueses. Até às Palavras Andarilhas estávamos na cauda no mundo nesta área. A Cristina Taquelim, o António Fontinha, o Jorge Serafim, a Luzia do Rosário, essa equipa grande, merecia uma estátua porque impulsionaram o primeiro encontro das Palavras Andarilhas e colocaram-nos no topo.
Também canta ou apenas conta?
Faço parte de um grupo de cantadores ao desafio. Também canto. Absorvi tudo o que pude absorver. Quero contar-lhe isto: havia aqui duas senhoras em que a pobreza fazia parte da família. A Violina era deficiente, era marreca: aos seis anos o irmão tinha-lhe dado uma paulada nas costas e ela ficou vergada, nunca mais se ergueu. E dizia: “Ó menino, eu sou a Marrequinha. Violinda é só o meu nome do registo.” Tinha uma irmã, a Conceição, que partir dos 17 anos nunca parou de tremer. Pois a Violinda sustentou as duas graças ao seu trabalho. Um dia, ela entra-me pelo estabelecimento dentro. “Ó Conceição, já ensinaste a Avé Maria da Senhora das Dores ao nosso Zé?” Só nós as duas é que sabemos”. Lá me sentei e ouvi. Uns dias depois, entra-me de novo pela casa dentro. “E o Estalado? Já te ensinaram? Senta-te aí.”
E o menino sentava-se.
Pois. E contavam-me as histórias dos estudantes que vinham aos pastéis para a Branquinha e as cachopas iam à água só para ver os rapazes bonitões que vinham de Coimbra de capa e batina. Eles, todos encantados com elas, vinham para a janelas da Branquinha em vez de estarem a comer os pastéis, tocavam guitarra e cantavam. Isto era um céu aberto com as portas fechadas. E o Estalado era assim: “Ó poço do pelourinho/ carreirinho das formigas/ onde os asnos se sentam/ a ver as pernas às raparigas”. Elas usavam as saias compridas e para dar à bomba da água as saias mexiam muito. Eles sentavam-se junto à parede em frente e quando as saias subiam um bocadinho, regalavam-se.
Ainda em relação à música, o Senhor Manuel Gonçalves, tendo idade para ser meu avô, foi como um irmão para mim. Ensinou-me alguma coisa na guitarra portuguesa, mas eu nunca soube tocar nada que prestasse. Tive sonhos, mas não tinha mãos.
Que memórias tem do Paço Ducal?
As memórias que eu tenho do Paço estão muito relacionadas com o velho Armando Gonsalves. Foram 150 anos da administração Gonsalves, o velho Armando Gonsalves foi o último grande administrador. E tão grande que foi. Para nossa tristeza, já não pertence à Casa Cadaval, pela péssima administração que veio a seguir. O senhor Armando Gonsalves dizia que ninguém tem o direito de dar esmolas. Temos o direito de ajudar o outro sem estar a diminuí-lo. Um dia, a cozinheira deu-lhe conta que tinha entrado um casal de andorinhas na cozinha e estava a começar a fazer o ninho. Chamou dois homens que construíram uma passagem para as andorinhas que garantisse o asseio da cozinha. E então, com aquela desculpa de lhe dar algum dinheiro, disse à cozinheira: “Olha, Teresa, sabes uma coisa? Estou muito feliz porque temos visitas interessantes durante um tempo. Agora, quando tu vieres dizer-me em fevereiro que as andorinhas chegaram, eu dou-te 20 mil reis.” Então, quando chegava o fim de Janeiro, ela abria a janela e pedia: “Suas malvadas, venham depressa que os 20 mil reis dão-me tanto jeito.”
Aquele celeiro enchia-se?
Sim, porque a renda era paga ao dízimo. Dez por cento era para a casa. Secavam ali os cereais e havia festas. Quando o Dr. Carlos Gonsalves se formou em Medicina, houve uma festa no paço e toda a freguesia foi convidada. E depois outra particularidade: as festas sucediam-se sempre que cá viesse a duquesa ou o duque de Cadaval. Havia sempre uma ceia e um sarau aberto com o Dr. Armando a presidir e os trabalhadores a cantar e a tocar. A senhora duquesa dizia que não tinha uma casa assim em mais lado nenhum.