A campainha tocou à hora de jantar. Era o pai. Aparecia ao fim de décadas, durante as quais as únicas manifestações que produzira da sua existência haviam sido uns postais pontuais, pretensamente enviados de locais exóticos, que exibiam invariavelmente carimbos dos correios de locais ordinários, por vezes não muito distantes da aldeia onde abandonara a família. A família, que os vícios tinham ceifado até só sobrar um filho só, tinha respeitado o seu desinteresse.
Estava a morrer, não lhe restariam mais que poucos meses, na melhor das hipóteses. Mostrou os exames: era nas tripas. Descoberto tarde de mais, nada a fazer. Lamentava não ter ficado com a família e as sovas que dera à esposa, que lhe doeram mais a ele que a ela, mas não tinha sido possível, não fora talhado para clima do vale e para o controlo social imposto pela exiguidade da geografia, humana e física.
O filho permaneceu em silêncio durante a refeição. O pai disse que era aquela, afinal, a sua terra e não lhe passava pela cabeça morrer noutro sítio. Por balsâmicos que fossem os ventos de Onauea e uterinas as águas de Kralendijk, o fim só fazia sentido no sítio em que nascera, talvez por um desejo que os instintos lhe infligiam de fechar o círculo. O filho recordou-se de um postal de Onauea com carimbo dos correios de Ciudad Rodrigo que recebera uns bons vinte anos antes, mas a sua única reação foi pegar nos pratos e levá-los até ao lava-louça.
Bem sabia, continuou o velho, que não tinha sido um bom pai. Mas era o único filho que tinha, pelo menos que fosse do seu conhecimento. Outros que houvesse, seriam incógnitos, não subtrairiam à totalidade da herança, e era isso tudo o que lhe podia oferecer. A sugestão implícita nas palavras do pai era revoltante para o filho, mas aceitável. A herança não era mais que aquela pobre casa e o terreno em redor, na verdade já seus por falta de ter com quem os dividir, e mais umas sesmarias dispersas pelos montes, sem grande valor mas ainda assim vendáveis. Poderia por fim convertê-las em alívio de um quotidiano sem desafogo. E uns poucos meses, na melhor das hipóteses, não lhe parecia mais insuportável que o habitual.
Aprontou a cama do quartinho, que tinha sido o seu, há mais de trinta anos ocupado por tralhas, e disse ao pai que podia ficar. Afinal, a casa ainda era pelo menos meio dele. O pai esboçou uma quase comoção e dispôs o corpo a um abraço, mas não foi correspondido. Entrou, arrastando a enorme mala onde guardara tudo o que poderia necessitar nos últimos dias e sentou-se na cama a olhar para a janela. A escuridão do lado de fora dos vidros devolvia-lhe o próprio rosto macilento, o olhar mortiço que não perdera o lume da predação.
No dia seguinte, enquanto o filho cozinhava o jantar, entrou na cozinha e disse que lhe queria pedir um último favor, a executar após a sua morte. Pousou um catálogo de lápides e jazigos na mesa e abriu-o na página catorze, onde figurava uma extravagância orientalista ao gosto fin de siècle sobredimensionada para o cemitério da aldeia. A maneira que tinha de se devolver àquela terra em paz, justificou, era dando-lhe o reconhecimento de que fora ali que se fizera, o seu início, percurso e fim imortalizados em letras de ouro, contrastando com as fotos desbotadas em molduras ovais que ornavam a maioria das demais inumações. O filho olhou de soslaio para a lápide descomunal e supôs que ela custaria o suficiente para engolir ou até exceder a magreza da herança que o esperava. Mas, não havendo forma de o pai saber se o seu desejo seria respeitado, anuiu em conceder-lhe essa cortesia.
Passado um mês de convivência em silêncio, deu com o pai morto na cama. Estava como se ainda dormisse, sem sinal de sofrimento ou uma derradeira pontada de culpa. Não se deteve. Tirou o dinheiro que estava na carteira do pai e reservou o dia para tratar dos procedimentos. Chegado à agência funerária para negociar a lápide mais barata que tivessem, foi informado que o pai já tinha reservado a extravagância orientalista há umas semanas, junto com as letras de ouro que haviam de se lhe apor. Tinha inclusive comunicado a sua intenção monumental a toda a gente, provocando reações entre a desconfiança e a perplexidade na freguesia. Não podia deixar de causar alguma emoção que um filho da terra, mesmo extraviado, resolvesse homenagear as suas raízes dando na morte o que o destino não lhe permitiu dar em vida, acrescentou.
O filho estacou. Fitou sem expressão os olhos do agente, que desviou o olhar, deu meia volta e regressou a casa. Entrou no quartinho, já esvaziado do corpo do pai, e vasculhou entre a tralha até encontrar os postais. O primeiro da pequena pilha era o mais recente, de há quase quinze anos, sem missiva e no qual as águas de cristal de Ko Sam Sao se mostravam numa fotografia com as cores saturadas. O carimbo era dos correios de Condeixa-a-Nova. Pegou na mala do pai, de onde retirou os poucos pertences que este lá tinha deixado, encheu-a com a sua própria roupa, meteu o postal e as economias no bolso de dentro do casaco e partiu, a pé, pela berma da estrada. Estugando o passo, ainda conseguiria apanhar o último autocarro do dia.