— Boa noite, Dr. Pichón. Antes de começar devo dar-lhe uma notícia que o vai alegrar.
— Boa noite, Madalena. As notícias que dá, sempre me alegram.
— Pois fique a saber que recebemos algumas reações de ouvintes que enviaram mails para a redação.
— …
— Pedem para falar das birras. Perguntam se o doutor não é osteopata. Querem saber se não era o seu filho Marcelo, o amigo de Alejandra Pizarnik. Uma ouvinte escreveu: “Essa Pizarnik telefonava às 3 horas da manhã à Silvina Ocampo e acabava a recriminá-la por não se querer suicidar a meias”.
— Não havia telemóveis. Telefonar assim às três da manhã, é pouco plausível.
— Uma ouvinte da Liga La Leche diz que o senhor, a falar da amamentação, “lhe lembra um professor que descrevia a gravidez como uma deformação ovovivípera”. (riem ambos)
— É exatamente o que penso. Uma deformação ovovivípera, em que uma vítima inocente foi seduzida por um violador hereditário. (ouvem-se ruídos intraduzíveis de Madalena)
— Também teve alguns elogios. Mas parecem ser de colegas da Psicanálise argentina.
— Podemos começar? (o dr. Pichón está levemente irritado) — Digo-lhe já que o tema que escolhi para hoje é o da reputação.
— Reputação?!
— Tal qual. A nossa reputação. A que a Madalena construiu e se esforça por manter e reforçar de cada vez que falamos para um público, que é, apesar de tudo, desconhecido. Público que existe enquanto fantasma, na nossa consciência.
— Eu percebo o conceito de reputação. Não me passava pela cabeça era que fosse capaz de o escolher para uma noite de entrevista.
— A reputação é aquilo que a opinião pública pensa de um determinado indivíduo. (pausa). Deve ser esta, a definição dos dicionários. O que significa que há aqui, imediatamente, alguns elementos de reflexão. A reputação implica um público com opinião… (Madalena interrompe)
— Estou a pensar nas crianças. Em que altura da vida se pensa que as crianças adquirem uma reputação? E quem cria essa reputação.
—Muito cedo, certamente. Se interrogarmos diretamente os pais apercebemo-nos disso.
— Muito cedo, quando? (incisiva)
— Aos 10 meses, algumas crianças batem palminhas para uma audiência. Ou sorriem com mais frequência e intensidade se estiverem a ser observadas na sua atividade, mesmo por um estranho. Mas imagine que interrogamos os pais de uma criança de um ano, sobre as características do temperamento de um filho. Eles sabem dizer, com pouco esforço, se ela é tímida ou expansiva.
— Tímida ou Expansiva. (Madalena repete, pesando as palavras) —Essa divisão é fundamental, na definição de carácter?
— De certa forma, sim. As crianças inibidas não apreciam demasiado a novidade, dão-se bem nos confinamentos, detestam a alteração súbita das rotinas, são menos arrojadas na exploração, mais cuidadosas, mais sensíveis ao perigo, à ameaça, à punição.
— E, em oposição, as crianças a que chamou expansivas, seriam mais impressionáveis pela novidade, mais impulsivas e arrojadas, sem consciência do perigo e pouco controláveis através da ameaça.
— Sim, funcionando melhor com a recompensa, do que com a ameaça.
— E que tem isso a ver com a reputação?
— O reconhecimento dessas características numa criança pressupõe que ela tem um reduzido grupo de pessoas… (Madalena interrompendo)
— Reduzido, mas significativo…
— Que interpreta e valoriza os seus comportamentos e lhes responde significativamente.
— Uma audiência. (exclamação)
— Uma audiência. Um público. Uma primeira opinião pública. (o dr. Pichón ganha fôlego e continua) — Os pais, desde logo. A família próxima. Os cuidadores iniciais, como são as amas, as educadoras, os professores, os vizinhos…os profissionais de saúde. Os amigos dos pais.
— Que público fabuloso, esse.
— Imagine como isto funciona. Estas pessoas qualificam os comportamentos das crianças. Constituem-se em audiência. Reagem superlativamente, como se faz habitualmente com os bebés e as crianças pequenas. Acentuando as exclamações de espanto e aprovação, aplaudindo, festejando. E usando palavras.
— Amor da tua mãe, meu herói, orgulho da minha vida. (Madalena imita a voz melada de algumas mães) — Nem sempre interpelando diretamente.
— Claro, a reputação cria-se e espalha-se através do gossip. Del chisme. Como é que vocês dizem?
— Mexerico, fofoca.
— Curioso que não nos venha à cabeça imediatamente uma palavra mais positiva. É como se, quando falamos dos outros, propagássemos sobretudo aspetos delicados da sua vida íntima.
— Como se nos dedicássemos especialmente a fabricar, para os outros, uma má reputação.
— Sob o ponto de vista evolutivo, o mexerico é fundamental. (o dr. Pichón tenta um fio de coerência para a conversa)
— Sob o ponto de vista das audiências dos jornais e dos programas de televisão também (Madalena, rindo). Mas não se desvie das crianças, doutor, já lá vamos à evolução das sociedades humanas.
— Humanas e não só, Madalena. (como se fizesse, a contragosto, um aparte) — Um dia falaremos desse irritante excecionalismo humano, pelo menos tão irritante como o universal masculino.
— Prometido, um dia falaremos… de O único animal que…, não é dr. Pichón?
— Está sempre a surpreender-me, Madalena. (embevecido) — Como é que, tão nova, me salta assim com uma citação do Augusto Abelaira, esse vosso escritor que escreveu a Cidade das Flores e, na revolução, continuou a usar casaco de tweed e laço.
— Não devia surpreender-se, doutor. Não sou tão nova como me imagina e tenho uma reputação. Porque pensa que me escolheram para o entrevistar? O nosso diretor não tem linha editorial, mas dorme pouco.
— Adiante, então, Madalena. E desculpe a interrupção. Estava a dizer que outros animais além dos humanos, constroem uma reputação. Nas sociedades animais em que existe um macho dominante, por exemplo, a luta por esse estatuto de dominância passa pela construção, por parte dos candidatos, de uma reputação.
— Estou a ver… (Madalena olha para o dr. Pichón com olhar míope e parece vê-lo a bater com os punhos no peito cabeludo)
— Há estudos muito curiosos com o Labroides dimidiatus, um peixe dos recifes que atua como limpador de outros peixes dos recifes. O Labroides ora os cata e limpa de parasitas, ora os morde. De forma que os peixes hesitam em estabelecer com ele uma relação de cooperação.
— Quem não hesitaria.
— Pois há peixes limpadores com táticas fraudulentas, insinuando que são cooperativos, com gentis marradas e beijinhos…
— Criando uma reputação de cooperação amigável…
— Até serem aceites como limpadores…
— E espetarem valentes ferroadas nos incautos? Não posso crer.
— Assim mesmo. Mas prometo que não a desvio, e aos nossos putativos ouvintes…
— Bem reais, pode crer…
— Da aquisição de uma reputação na infância. Muito cedo, como sublinhava há pouco. O que implica a existência de um público e do mexerico.
— De um núcleo de pessoas atentas e com capacidade classificativa.
— E de um conjunto de relações sociais capazes de, através do mexerico, a difundir. (Madalena está entusiasmada). — E isso funciona no comportamento das crianças, nomeadamente. Calculo que o herói da sua mamã não vai comportar-se como um vilão na creche.
— Na creche e no infantário, as educadoras e auxiliares criam uma reputação social mais alargada, que pode completar a reputação doméstica, contrariá-la em alguns aspetos. Depende de fatores constitucionais da criança, como a capacidade que tem para perceber as regras sociais e de as querer cumprir ou contrariar e da relação que estabelece com os cuidadores. Do facto de querer sobretudo agradar ou testar e contrariar.
— E da relação que estabelece com outras crianças, do ambiente do grupo, de como são os coleguinhas.
— Sim, sim…Isso também faz parte da reputação. O papel da criança no grupo. Aspira a liderar e tem argumentos para isso?
— Incluindo táticas fraudulentas?
— As estratégias de gestão da reputação mais adequadas, sim. Vale tudo. Mas pode limitar-se a ser um ajudante do líder. Ou adquirir protagonismo fazendo rir os outros. Ou ser o mais rápido. Ou…
— Isso quer dizer que rapidamente a criança tem uma reputação em casa, na família, na escola, junto dos professores e no grupo de pares.
— E tem de fazer jus à sua reputação.
— E de conhecer bem a reputação dos outros. O que consegue através do mexerico e através da forma como é capaz de perceber as intenções dos outros.
— De ter uma Teoria da mente.
— Pode explicar?
— Ter uma Teoria da mente (dos outros) é a capacidade para atribuir estados mentais a outros e de interpretar as suas ações. Foi um conceito introduzido por Simon Baron-Cohen, professor de psicopatologia do desenvolvimento na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
—Conhecer a reputação dos outros é importante para ter uma teoria da mente dos outros. As meninas, especialistas em mexericos, teriam vantagens competitivas nestes grupos sociais?
—As meninas interessam-se muito mais pelos outros, ao que parece. Têm mais empatia, por vezes extrema empatia. No final da infância e na adolescência, preocupam-se extremamente com a sua reputação. Tanto como se preocupam com o seu aspeto físico, incluindo os códigos vestimentários.
—Parece tudo tão complicado, dr. Pichón. Transportamos connosco uma reputação, construída precocemente, através da família de outros referentes e de instituições. Esforçamo-nos por agir de acordo com a nossa reputação.
— Ou com o que julgamos que os outros pensam de nós.
— Usamos mecanismos de gestão da nossa reputação, que incluem a falsificação e a dissimulação. Tentamos desesperadamente ter uma teoria da mente dos outros, o que inclui participar do mexerico. (progressivamente cansada) —Como subsistir, sobretudo se não temos uma boa audiência, boas instituições, paciência para a fofoca?
—Acabamos assim, Madalena. Em programas destes, satisfeitos com o que nos pagam.
—Não diga isso, dr. Pichón. O senhor teve uma carreira. Fundou uma Sociedade Científica. As suas opiniões tiveram uma vasta e culta audiência. Construiu uma reputação que dura até hoje. Como lhe disse, temos recebido inúmeros testemunhos que são o reflexo… (o dr. Pichón, interrompendo).
—Vivi muito tempo enclausurado na minha reputação, Madalena. Como numa urna, num sarcófago. Responder a questões ridículas copiadas de grupos ridículos de autoajuda. E responder adequadamente, de acordo com a minha reputação. Até que não aguentei mais. Por isso estou aqui, consigo. Quero ter má reputação.
Ouvem-se as gargalhadas de Madalena misturadas com a canção de Georges Brassens intitulada La Mauvaise Réputation. A meio da canção, aos 2mn.15s, o produtor começa a fazer fade. Ouve-se a voz off de Madalena:
—Porra, pá. Estás com pressa. Deixa o homem cantar até ao fim.
A voz roufenha de Brassens soa durante mais 1mn.20s, repetindo
Mais les braves gens n’aiment pas que
L’on suive une autre route qu’eux
Non, les braves gens n’aiment pas que
L’on suive une autre route qu’eux *
* Mas a gente de bem não gosta/ Que se use outra malaposta
Sem se aperceberem que o microfone continua ligado o dr. Pichón e Madalena continuam a falar. Quando Brassens se cala, ouve-se a voz de Madalena
— Percebo os seus argumentos, mas acho-o demasiado centrado na motivação extrínseca, vinda de fora, da recompensa externa. Aquilo a que se pode chamar de estratégia. Passa por cima das motivações intrínsecas, da ordem da afiliação e pertença.
— Afiliação?
— The need to belong. De Baumeister e Leary. Acho que para além da compliance com a audiência, que enfatizou, o comportamento social está também fundado numa necessidade de ajudar os outros, de mostrar amor para ser amado, da alegria e prazer que a socialização traz consigo…
— Madalena deixe-me lembrar-lhe uma coisa. Desde 1977 que não leio nada.
— Desculpe, dr. Pichón. Às vezes esqueço-me.
— Também eu. Também eu. Mas não deve.