Tinha sete anos quando, da janela do quarto, tentou captar o movimento das aves que sobrevoavam o jardim. Passou horas a registar aquela multiplicidade de espécies. O processo começou a repetir-se com frequência, mas Manuel Malva não se ficou pelo encanto que daquele momento: procurou compreendê-lo, falar a língua dos pássaros, através de um pequeno guia de identificação das aves guardado numa das estantes de casa.
Fascinado pela complexidade, harmonia e beleza do mundo natural, licenciou-se em Biologia e, em 2019, foi co-fundador, com um grupo de amigos, da Milvoz. Nesse ano, a associação adquiriu um terreno de floresta nativa, numa encosta na zona de Almalaguês, onde criou a primeira bio-reserva. Será a primeira de outras que se seguirão. No futuro, a Milvoz pretende criar uma rede de pequenas reservas naturais que combata ameaças à preservação da biodiversidade, nomeadamente a perda de habitat, a propagação de espécies vegetais invasoras e os incêndios florestais.
A fotografia — a que aguçou a curiosidade daquela criança de sete anos — perdeu protagonismo, mas Manuel Malva continua, sempre que possível, a praticá-la. “Sobretudo por saber que ela está na origem de toda esta caminhada.”
— Quando começou a apreciar os pequenos detalhes do mundo natural?
Desde muito cedo e de forma gradual, incentivado pelos pais e avós, que fizeram questão de me colocar desde cedo em contacto com a paisagem natural. Com frequência alertavam-me para pequenos elementos que passam geralmente despercebidos, tais como o detalhe do canto de uma ave ou um inseto discretamente poisado numa flor. Esse estímulo fez com que começasse a prestar mais atenção aos pequenos detalhes da natureza, despoletando a vontade e curiosidade de aprender a descobri-los por mim mesmo.
— Começou a fotografar a natureza aos sete anos. Como é que uma criança dessa idade se começa a interessar pela fotografia?
Tudo começou quando recebi uma câmara fotográfica como prenda de aniversário. Poucos dias depois, ao constatar uma grande atividade de várias aves no jardim de casa, optei por tentar registá-las fotograficamente desde a janela do meu quarto. Nesse momento, perante o difícil jogo de perseguição para conseguir captá-las, o entusiasmo do desafio fez com que estivesse várias horas a registar aquela multiplicidade de espécies, processo que passou a repetir-se com frequência a partir desse dia.
— Começou mais tarde a identificar as espécies fotografadas através de guias de identificação. Como tinha acesso a esses guias?
Exatamente. Após a fotografia, era necessário identificar a espécie (que geralmente eu ainda não conhecia). Todo esse método de investigação em busca da sua identidade, bem como da descoberta da sua biologia e comportamento, eram tão empolgantes quanto o registo fotográfico. Tal era possível devido ao facto de existir, na estante de livros de casa, um pequeno guia de identificação das aves de Portugal e da Europa, o qual percorri da primeira à última página vezes sem conta.
— Ir para o curso de Biologia foi um caminho natural?
Foi, sobretudo, um caminho lógico e coerente para comigo mesmo. Para quem é fascinado pela complexidade, harmonia e beleza do mundo natural, a Biologia é uma ciência que permite ver e compreender o mundo ao nosso redor com outros olhos, desvendando os segredos da vida e do Planeta como o conhecemos nos dias de hoje.
— Em 2019 nasceu a Milvoz -Associação de Conservação da Natureza. Como se deu esse processo?
O nascimento da Milvoz deu-se, igualmente, de uma forma muito natural, muito espontânea. Com o passar dos anos, e à medida que fui crescendo, comecei a constatar as inúmeras agressões recorrentes ao património natural, sobre as quais via pouca gente preocupar-se e agir. Esse sentimento de apatia generalizada foi-se tornando mais evidente para mim, sobretudo quando contactei vários professores universitários do meu curso para que pudessem prestar auxílio na resolução de algumas problemáticas ambientais na região, tentativa que se revelou fracassada. Essa desilusão deu o mote para que lançasse a proposta junto do meu círculo de amigos. E daí nasceu a Milvoz, uma organização que tem como objetivo dar voz ao património natural da região de Coimbra, procurando manter a marca de cidadania ativa que está na sua génese.
— Que área compreende a Bio-Reserva Senhora da Alegria?
A Bio-Reserva Senhora da Alegria localiza-se entre as povoações de Almalaguês e Rio de Galinhas, 10 quilómetros para sul da cidade de Coimbra. Compreende uma encosta íngreme orientada a norte, sob solos areníticos, características que a tornam num refúgio fresco, sombrio e abundante em água. Nos seus dois hectares de área atual, a Bio-Reserva é atravessada pelo caminho pedestre histórico da romaria à capela da Nossa Senhora da Alegria (que dá o nome à Bio-Reserva), bem como, num dos seus extremos, pelo ribeiro dos Polomos, um curso de água permanente e rico em vida.
— Que espécies habitam a reserva?
Estabelece-se na Bio-Reserva um bosque nativo muito frondoso, onde a diversidade de espécies é surpreendente: desde as grandes folhosas que prosperam nas zonas mais protegidas da encosta, tais como o castanheiro, o carvalho-alvarinho ou o olmo, às espécies de carácter mais mediterrânico que dominam nos setores mais secos e expostos da encosta, como o sobreiro, o aderno ou o medronheiro. Esta diversidade do coberto vegetal promove também uma elevada riqueza da vida animal, que é impressionante na encosta. O corço, o texugo, a salamandra-lusitânica, a rã-ibérica, o dom-fafe ou o gavião são algumas das muitas espécies emblemáticas que lá ocorrem.
— Que projetos tem a Milvoz para o futuro?
Futuramente, a Milvoz continuará a trilhar os caminhos que lhe permitam desenvolver o seu principal projeto: a criação de uma rede de Bio-Reservas na região, com objetivos de conservação da biodiversidade, dos recursos naturais e da identidade da paisagem rural. Nesse sentido, procurará criar novos espaços dedicados à conservação da natureza em locais de preservação prioritária, bem como adquirir zonas degradadas na periferia destes, onde desenvolvemos ações de restauro ecológico com vista à recuperação dos habitats nativos. Nesse processo, a Milvoz procura sempre ao máximo envolver as comunidades locais, desenvolvendo educação ambiental e alertando os cidadãos para as principais ameaças à conservação da paisagem natural.
— As pessoas estão mais atentas às questões ambientais?
Eu quero acreditar que sim, que estamos timidamente no bom caminho. No entanto, ainda muito longe da dimensão e impacto desejáveis ao nível da consciência ambiental da sociedade em geral, bem como da sua consequente influência na tomada de decisões políticas e administrativas mais sustentáveis e amigas da natureza.
— Com o nascimento da Milvoz e com todas as iniciativas a ela ligadas, em que lugar ficou a fotografia?
A fotografia perdeu protagonismo, mas está lá, e sempre que possível continuo a praticá-la. Sobretudo por saber que está na origem de toda esta caminhada.