Número 10

7 de Agosto de 2021

CAIXA ALTA

Marco Ribeiro Henriques: “Nada está adquirido quando se fala em Direitos Humanos”

Andreia M. Silva
Marco é professor universitário, jurista e investigador em questões de Direitos Humanos


Diz ter despertado cedo para o Direito e para a necessidade de justiça social. Filho de operários em fábricas de transformação de argilas, aos oito anos Marco Ribeiro Henriques cozinhava os almoços para que os pais pudessem trabalhar até mais tarde nas fábricas ou no campo e cedo começou a cuidar das três irmãs, todas mais novas. Quando decidiu mudar-se para Coimbra e tirar a licenciatura em Direito, era pai “a tempo inteiro” de duas crianças e atendia telefones na PT. Conseguiu. Hoje é professor universitário, jurista e investigador em questões de Direitos Humanos, Direito Penal e Política Social, com especial foco no trabalho prisional e na condição das mulheres presas. Coordenou, até há pouco tempo, a delegação de Coimbra do CASA – Centro de apoio aos sem-abrigo. Ajudou a fundar o Observatório dos Direitos Humanos. Quando diz que escolheu Direito para advogar na defesa daqueles que sofrem injustiças, Marco Ribeiro Henriques não fala à toa. A menos de duas semanas do casamento, a casa que partilhava com o companheiro e os dois filhos foi devorada pelas chamas. Ainda hoje acredita ter-se tratado de um crime de ódio.

Casou. Trajado, após um processo de formação em Direito num contexto nem sempre fácil, e na Universidade de Coimbra, onde “as tradições académicas não são apenas essencialmente machistas, mas muitas são misóginas e degradantes”. Por isso, naquele ato diz ter cumprido não uma, mas muitas realizações.

– Como foi a sua infância?

– Sou o mais velho e único rapaz de 4 filhos. Cresci numa aldeia muito pequena, um exíguo lugar no concelho de Porto de Mós (distrito de Leiria), chamado Chão da Feira. Os meus pais sempre foram operários/as em fábricas de transformação de argilas, uma indústria proeminente na zona que lhes consumiu a disponibilidade e a saúde necessárias para desfrutar de mais tempo com qualidade com a família ou mesmo de ócio. Sempre me lembro deles a trabalhar. Quando não era nas fábricas, era nos campos. Criar 4 filhos pequenos na década de 80 e durante os anos 90 do século passado, numa aldeia do Interior do país, não tinha mudado muito mesmo corrido tanto tempo sobre os anos de atraso do Portugal do Estado Novo. Com 8 anos, era eu quem cozinhava os almoços, muitas vezes mesmo o jantar para a família, para que o meu pai e a minha mãe pudessem trabalhar até mais tarde e, a partir de certo momento, muito cedo, era já eu quem cuidava das minhas irmãs (todas mais novas). Eram tempos difíceis, mas ainda assim considero que tive uma infância com um percurso e as oportunidades que estavam disponíveis à época para as crianças da minha geração no sítio onde cresci – escola, muitas brincadeiras (sou do tempo em que a escola funcionava no período da manhã ou da tarde, o que permitia criar muitas oportunidades de descoberta, aventuras – umas mais perigosas do que outras – e muitas brincadeiras) e algumas responsabilidades que começavam nas pequenas coisas da casa.

 – Tem dedicado a sua vida à área dos Direitos Humanos. Quando e como começou a interessar-se por esta área?

– Penso que a resposta a esta questão está intimamente ligada com a minha vivência. Dos 4 filhos sempre fui aquele que mais gostava da escola, talvez por estar tão desperto para a realidade das coisas dos adultos. Preconizando nos meus pais o exemplo de uma vida muito dura, despertei cedo para o Direito e, sobretudo, para a necessidade de justiça social. Porém, os meus pais nunca tiveram condições financeiras para permitir a continuidade dos estudos, pelo que acabei por sair cedo da escola, escapei da fábrica por poucos anos a viver em Roterdão, de onde regressei já pai e com muita vontade de mudança daquele contexto em que conhecia viverem os meus pais. Como se adivinharia, o regresso não foi tão linear e a vontade de transformação (própria da idade) esbarrou no circunstancialismo da realidade nua e crua da vida, já com um filho e num meio tão pequeno e com tão poucas oportunidades. Quando dei por mim, estava enfiado numa fábrica, tudo o que eu não queria para mim, onde trabalhei 7 anos. Ainda assim gosto de pensar que a fábrica consolidou a minha vontade trabalhar com Direitos Humanos, justiça social e discriminação (todas!). Saí da fábrica no mesmo ano em que me divorciei e assumi a paternidade a solo e a tempo inteiro e, pouco tempo depois, tinha-me mudando para Coimbra para realizar o objetivo de completar uma licenciatura em Direito.

– Num momento em que há cada vez mais sinais de intolerância e de populismo subversivo, os direitos humanos podem estar ameaçados?

– Estão claramente ameaçados. Aliás, nada está adquirido quando se fala em Direitos Fundamentais e em Direitos Humanos. É uma luta contínua que se espelha em cada ato e em cada pessoa. Os Direitos Humanos vivem-se nas decisões e posicionamentos que todos os dias tomamos na vida pessoal, profissional e, sobretudo, na relação com o/a nosso/a interlocutor/a – as outras pessoas! Acredito que é preciso olhar para a história em permanência para entender o processo de surgimento, amplificação e, particularmente, os retrocessos dos Direitos Humanos nas sociedades, particularmente no último século, para perceber o quão frágeis são e como é ténue a linha que separa o bem e a naturalização do mal como tão bem explica Hannah Arendt. As narrativas populistas, assentes numa espécie de discurso vago, opaco na sua essência, sem projeção da representatividade que trata os assuntos mais sensíveis pela rama e sem profundidade ou mera reflexão, está aí e não é sequer apanágio português ou mesmo europeu. Considero antes que é um movimento de retrocesso das conquistas em matéria de direitos humanos. Estas conquistas afrontam alguns padrões ainda instalados – sempre foi assim! – veja-se a luta das sufragistas, hoje ninguém teria o topete de colocar em causa a qualidade do voto das mulheres. Hoje as lutas são outras, mas não são assim tão diferentes, até os/as visados/as são os/as mesmos/as – sempre os grupos mais desfavorecidos que sobrevivem há décadas ou mesmo séculos nas margens do sistema social. Acredito que é preciso continuar a trabalhar para lhes dar voz e para consolidar a representatividade. Felizmente, não há muitas dúvidas sobre a origem da maioríssima parte destes problemas e as soluções mais preconizadas são também mais visíveis e, por isso, mais bem aceites. O desenvolvimento dos Direitos Humanos é um caminho de progresso das sociedades no século XXI. 

É jurista e investigador em Direitos Humanos, Direito Penal e Política Criminal, com especial foco no trabalho prisional e na condição das mulheres presas. Esta população tem pouca visibilidade na sociedade. É possível dar-lhes voz?

– Primeiro uma clarificação: estas pessoas têm voz. Os problemas estão na representatividade – no lugar de fala a que não têm acesso fácil. Passei os últimos anos a trabalhar nas prisões com as mulheres que são mães neste contexto e, com experiência alargada ao trabalho de campo também no Brasil, consegui perceber o quanto é silenciada a sua existência. A pena de prisão não serve para tirar a identidade a ninguém, mas quando se vive 5, 10, 15 ou até 25 anos sendo tratado/a por um número, está criado, ao menos, um anátema quanto às finalidades da pena de prisão e a própria prisão enquanto solução vigente no Estado de Direito para quem comete crimes com determinado grau de culpa. Se a isto juntarmos o estigma, a própria vigência da experiência prisional, estão criadas as condições para reproduzir e retroalimentar as cadeias de pobreza e exclusão destas pessoas. Se pararmos para analisar com profundidade quem são estas pessoas que estão nas prisões, os seus percursos de vida, sendo intelectualmente honestos/as, temos de admitir que o discurso puramente punitivo vigente é uma falácia. Se a esta análise subsumirmos o discurso populista e securitário sobre aumento de penas em certos crimes e a massificação do aprisionamento, conseguimos perceber o engodo que está por detrás deste tipo de soluções que “todos os dias” nos são apresentadas por líderes de países e movimentos/partidos políticos um pouco por todo o mundo. Reconheço a controvérsia, mas acredito mesmo que é preciso falar mais da continuidade da prisão nos moldes em que a conhecemos e, particularmente de género, quando falamos da população reclusa. Nos últimos anos tenho trabalhado no meu doutoramento com uma questão não menos problemática que perpassa estas: o trabalho prisional. São de facto muitas as questões que se levantam sobre a existência de prisões nestes termos em países desenvolvidos do ponto de vista dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais. As decisões de condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos têm chamado a atenção para o sistema prisional português onde o Conselho da Europa, nos seus relatórios sobre o estado das prisões no espaço do Conselho (47 Estados), tem identificado nos últimos anos novas formas tortura – agora relacionadas com as condições de cumprimento de penas em algumas prisões portuguesas. Por outro lado, alguns países têm optado por soluções de privação de liberdade menos “evasivas”, mais dissimiladas na comunidade em que a centralidade é a pessoa e a sua existência e dignidade enquanto Ser Humano naquilo que alguns autores chamam de “reentrada”. Ao contrário do que se possa pensar, este é um problema de civilização – é sobre o modelo de sociedade que falamos quando o assunto é privação de liberdade. 

– Foi coordenador da delegação de Coimbra – CASA. Os sem-abrigo são também pessoas que a sociedade prefere ignorar. Como foi essa experiência?

– No meu percurso após a licenciatura em Direito procurei sempre trabalhar para “devolver” à comunidade o impacto que as minhas escolhas produzem. Na realidade quis fazer Direito para advogar na defesa de todos/as aqueles/as que sofrem injustiças como aquelas que presenciei durante o meu caminho, mas depressa percebi que para atingir a justiça social é preciso bem mais e a vida também se encarregou de me fazer escolher um caminho para já excludente da advocacia, a docência, o que tem permitido estudar com maior profundidade estas questões e, o que mais prazer me dá, partilhá-las em sala de aula com jovens nos primeiros anos da sua formação académica. Tenho por isso abraçado alguns desafios cívicos em paralelo com a vida profissional e a experiência de 6 anos como voluntário no CASA, dos quais 4 em coordenação da delegação de Coimbra, são disso exemplo. Mas também noutros espaços tenho vivido oportunidades de trabalhar com processos de exclusão social como sucedeu enquanto coordenei o Grupo de Juristas da Amnistia Internacional até 2017 ou no Observatório dos Direitos Humanos que ajudei a fundar e onde cumpro um segundo mandato como presidente da Assembleia Geral. Em todos nunca aceitei ser remunerado e assumo o trabalho com a população mais desfavorecida ou – porque não assumi-lo? –, com aqueles/as que entre nós estão excluídos/as, como uma questão de civismo e de cidadania ativa. As pessoas em situação de sem abrigo são mais um grupo social que opera nas margens da sociedade e que ignoramos quase que em resultado de um certo estado ataráxico de convergência para o centro da organização social. Portugal tem feito muitos progressos para resolver esta questão que é de indigência social. Coimbra não se desvia deste trabalho e também conheceu desenvolvimentos muito significativos nos últimos anos que, sabemos, são muito impulsionados pela visibilidade que a Presidência da República vem dando a este problema, mas também resultado de uma consciencialização maior para o problema. Hoje, em Coimbra, temos soluções habitacionais disponíveis para projetos de intervenção com pessoas em situação de sem abrigo, uma coisa inimaginável há 10 anos. É preciso olhar o problema de forma holística, integrada e com intervenção multidisciplinar – é preciso ligar habitação com saúde, emprego, etc. Em 2018 havia mais de 3000 pessoas a viver na rua em Portugal e este número vinha já a ser reduzido até ao início da pandemia. Com a pandemia novos desafios nesta área se levantaram, mas acredito que o caminho está muito bem lançado para alcançar a meta de 2023/2024 proposta pelo Presidente da República de Portugal ser um país pioneiro na erradicação deste tipo de conflito com os Direitos Humanos.

Quando tirou a licenciatura em Direito, era pai a tempo inteiro de duas crianças e atendia telefones na PT. Foram tempos difíceis?

– Não foram tempos nada fáceis de facto. Talvez a grande vontade de concluir a licenciatura e a noção de que tinha duas crianças a cargo, a mais nova com pouco mais de 8 meses, foram suficientes para encontrar motivação onde por vezes só existia cansaço e desafios académicos vários. Era preciso trabalhar e educar, ao mesmo tempo que operava uma realização pessoal tão intensa como completar uma licenciatura. Consegui nunca faltar a uma reunião escolar ou festa de final de ano/período do Lucas e da Alicia. Tenho orgulho neste compromisso! Consegui concluir a licenciatura no tempo previsto (4 anos), sendo que durante o último ano da licenciatura completei em simultâneo o 1.º ano do Mestrado em Direito Processual, o que me permitiu saltar da licenciatura para o 2.º ano do mestrado – o ano mais doloroso – o da escrita da tese, – mas novamente tudo correu bem e consegui concluir o mestrado nos dois anos previstos. Tive uma orientação científica muito qualificada – que me mandou literalmente para a prisão! – acho que formamos uma grande equipa e até hoje subsiste, mas agora na preparação do doutoramento. Considero que sou alguém que gosta de trabalhar por objetivos e isso também ajuda, mas a verdade é que nada disto seria possível se não tivesse o apoio da minha família. Aliás, a família assume um papel central na minha vida. O trabalho na PT foi uma ótima experiência para compreender a importância dos direitos do trabalhador. Se já trazia esta convicção da fábrica, na PT tive a certeza que não basta cumprir uma lei laboral: é preciso olhar para os/as trabalhadores/as como pessoas e não peças da engrenagem de qualquer máquina de produção, mas não duvido nada das virtudes de trabalhar e estudar! 

 – Em 2013, pouco antes do casamento com o seu companheiro, viram a vossa casa incendiada. Acredita ter-se tratado de um crime de ódio. Na altura, disse que não bastava mudar as leis. Há ainda muito caminho a fazer?

– Verdade! A sociedade não muda por decreto, mas não há que descurar a importância de legislar no sentido da consolidação dos Direitos Fundamentais da pessoa humana. Este episódio foi muito perturbador para os 4, como se entenderá. Hoje, com distanciamento dos 8 anos que já passaram, conseguimos perceber melhor a motivação de quem o fez e o quadro de ódio em que aconteceu. Os crimes de ódio são caracterizados por ocorrerem sob determinada pessoa ou pessoas que detêm determinadas características ou qualidades. No nosso caso parece evidente que a motivação foi claramente a forma livre e desempoeirada com que encaramos a nossa vida e a nossa família. Não pedimos licença a ninguém para viver inteiramente a nossa existência como Seres Humanos. Sabemos que nem sempre é possível a uma pessoa LGBTQIA+ viver plenamente a sua identidade de género ou a sua orientação sexual. Isto tem que ver com a pressão que nos rodeia, provocada pela palete de clichés, padrões machistas e patriarcais que estão por todo lado e, como disse, a sociedade não se transforma de forma automática por decreto – existe antes um trabalho a fazer com as pessoas, as instituições, com a forma como a sociedade se organiza. Percebemos a motivação de quem o fez e, condenando-a, permitiu-nos compreender que a forma como vivemos pode ser também uma ação política – uma reação – a ação do Ser Humano é política na sua essência. Nós optamos, talvez, pelo caminho das pedras, mas não obstante este triste episódio, acho que posso afirmar que não nos temos saído nada mal.

– Entretanto, venderam a casa na Lousã e compraram um apartamento em Coimbra, uma cidade cheia de tradições, essencialmente machistas. Como tem sido viver na cidade?

– Começo por confidenciar que foi na Universidade de Coimbra, concretamente na Sala Amarela e Sala de Armas que eu e o Rui casámos civilmente em maio de 2013. Não sei se outros casais LGBTQIA+ já o haviam feito, ou mesmo se algum casaria na Universidade depois de nós. Apenas conheço casos de casais em que os/as nubentes são heterossexuais. Isto teve um significado importantíssimo para mim. Casei trajado, após um processo de formação em Direito no contexto que já descrevi. Cumpria muitas realizações naquele ato. As tradições académicas não são apenas essencialmente machistas, muitas são mesmo misóginas e degradantes. Penso que são fruto de um desenvolvimento histórico de uma praxis própria de uma sociedade que hoje seria obsoleta. Não é possível, no século XXI, alguém considerar normal a humilhação como chave de acesso ao grupo. Não é integração sob todos os pontos de vista. Há um trabalho a ser feito pela universidade e pela comunidade académica que está, creio, cada vez mais consciente da importância e urgência desta transformação. Não considero que se possa confundir estas práticas de jovens que se vão de Coimbra com a mesma rapidez com que chegaram, com a própria cidade. A identidade de Coimbra está muito mais assente na sua história, nas pessoas que cá vivem, no território e no que é produzido aqui. E há muita qualidade em Coimbra e que sai daqui para o mundo e que, por vezes, se perde na espuma dos dias em narrativas mais ou menos tendenciosas para não dizer mesmo pessimistas e despropositadas. Gostamos muito de viver aqui, como já gostávamos da Lousã, mas Coimbra tem uma luz própria, permite-nos uma experiência mais cosmopolita e é um território intelectual e culturalmente vibrante, o que apreciamos. Estamos muito felizes em viver cá.

– Com uma vida tão cheia, o que ainda lhe falta fazer?

– Esta é a resposta para 1 milhão de dólares. Sinto que me falta fazer tudo. Não sou pessoa de fazer planos de muito longo prazo, mas gosto de estar inserido em projetos superlativos, que até podem ser simultâneos, mas importante mesmo é que tenham impacto, não só na minha condição pessoal e da minha família, mas sobretudo junto das outras pessoas. Acredito que os/as outros/as somos nós e revejo-me inserido onde for útil a alguém.