Número 33

30 de Setembro de 2023

À SOLTA

Marginália

RITA ASSUNÇÃO SERRA

Adoro os quadros de Hieronymus Bosch. Demoro-me em cada uma das suas estranhas criaturas. São um delicioso convite à fantasia — uma prova da imaginação humana. Surpreende-me como as suas obras não foram declaradas heréticas. Entre outros argumentos, conta-se que o rei Filipe II gostava delas, e os críticos de arte também. Os aspetos lascivos das pinturas foram perdoados, por nos revelarem o pecado e a vulnerabilidade humana.

A abertura da igreja aos monstros de Bosch mostra-nos como esta soube conviver com o profano. Bosch, nome que significa floresta e que pintava sobre madeira, transgrediu a ordem de Deus sem desafiar o seu poder. À semelhança das marginália nos pergaminhos medievais, as criaturas contranatura eram remetidas às margens. O cânone convive com “o mundo às avessas” que confirma a superioridade do sagrado. O que é imaginário não é levado a sério e escapa, assim, à censura.

Umberto Eco, no livro o Nome da Rosa, detalha as marginália elaboradas por monges que experimentam e reprimem as paixões da carne. Os efeitos das marginalia nos textos sagrados são ardentemente debatidos no romance. O que podemos aprender com elas? A sua visão pode induzir-nos à corrupção, à estultícia ou, pior, ao riso? Incorrerá a palavra de Deus no ridículo pelas suas margens? Segundo o autor, esse risco só é real se o ataque vier de dentro — se o cânone for capaz de rir de si próprio. Falamos de um tempo onde as palavras não são ocas, elas suplantam e sobrevivem à realidade. O que se escreve tem consequências, mata-se e morre-se por livros. Rir liberta-nos das pretensões dos que reduzem o saber do corpo a exalações hilariantes de gases.

O personagem central do romance, Guilherme de Baskerville, sonha com o dia em que a igreja não conterá as margens. Diz-lhe Jorge, o vilão, que nesse dia, também ele será arrasado. Mas Guilherme é orgulhoso e confia na razão para argumentar com os simples. Pobre Guilherme, nunca trocou argumentos com um terraplanista no século XXI. No nosso tempo, as palavras tornaram-se ocas, e a única coisa que as segura são as margens que as comprimem. As margens sabem que o vazio das palavras se alastra. As marginália desapareceram com o fim dos que as reprimiam. As fantasias dos marginalizados perderam o sítio. A nova razão não ri, nem permite o riso. É a burocracia que regula as atividades humanas, que mata a imaginação diária e transforma as florestas em papel desinspirado. O produto do nosso tempo não é o conhecimento nem a tecnociência, é a fatura-recibo, com as suas margens cada vez mais estreitas, sem espaço para fantasias. As maravilhas desalojadas que procurem outro lugar.


Ilustração de Mari Momo