Autodidata, mulher, artista emergente perto dos 50 anos (celebrados há dias). Maria João Damas natural de Coimbra, regressou às telas depois de quase duas décadas sem pintar. “A última vez que tinha pintado foi em 1999 e o impacto que teve esse trabalho em mim foi simplesmente devastador. A pintura nem sempre é um ato de prazer”, conta.
Foi, contudo, esse dessossego constante que a fez regressar. Agora com outra maturidade. Com outra forma de viver o mundo. Com outros olhos.
Em boa hora o fez: participou em várias exposições, recebeu diferentes convites e foi ganhando a convicção de que teria de percorrer este caminho. Em maio, por exemplo, a Bienal de Arte de Londres selecionou o trabalho Q1 – Not even after one more day – [Quarantine Collection], que criou durante o primeiro confinamento.
Uma obra em que a cor predominante é o azul. “Sinto-me azul intenso e quem me conhece sabe que sou assim. Mas também já fui verde, amarelo e vermelho”, diz.
O autorretrato “Another kind of me (2019)” representa o momento em que decidiu voltar a criar. É uma tela cortada que, em movimento, revela a tinta que dá forma ao seu rosto: cor-de-rosa. E sem revelar o azul vibrante daquele olhar.
É autodidata. O que alimentou o seu desejo de pintar?
Desde que tenho consciência de mim, e pela viagem que faço através das minhas memórias, sempre me senti inquieta, sem perceber muito bem o que precisava de encontrar para diluir e amansar as energias que sentia. O desassossego era, e continua a ser, uma constante. E durante um tempo aprendi a viver assim. Às vezes, acontecia, não me submeter a este estado e procurava algo que me sossegasse. Um dia encontrei na pintura uma forte possibilidade de ser. Não me recordo como aconteceu. Até porque tinha já experimentado outras formas de expressão, não sentindo, porém, que seria esse o caminho.
Pintei durante alguns anos, quase sempre para mim e por mim! Era algo intimista que queria muito proteger. O tempo, nesse momento, tornava-se outro, cedendo e permitindo que eu me distraísse e me afastasse das dores que ia sentindo e da angústia do meu desassossego. Esses espaços eram o meu mundo, que fazia questão de o manter longe dos outros mundos que ia conhecendo. Não queria que soubessem que sofria. Talvez fosse isso…
Hoje penso que assim seria. Sempre fui muito alegre, extrovertida e amo muito a vida. Por isso, não fazia sentido abrir a porta para dar a conhecer outros sentimentos. Queria apenas partilhar o bom, porque acredito que o contágio acontece quando acontece a partilha. Na altura não equacionei que o poderia fazer através da pintura. Era cedo para entender tamanha dimensão…
Houve um interregno, um período em que deixou de criar. O que aconteceu?
A última vez que tinha pintado foi em 1999 e o impacto que teve esse trabalho em mim foi simplesmente devastador. A pintura implica uma diferente forma de sentir e nem sempre é um ato de prazer. Ao contrário, é também um ato de padecer e eu não estava preparada para o viver e acolher em mim. E o resultado de cada obra, tantas vezes traduz uma imperfeição, porque nos parece quase sempre distante do que pretendemos atingir. Exige uma possibilidade de aceitação de que nada é perfeito. A arte obriga-nos a percorrer um caminho tortuoso e isolado.
Estava grávida do meu primeiro filho, que hoje tem 20 anos, quando decidi não pintar mais. Ou criar. Não voltei a tocar num pincel durante anos. Nem tão pouco sentia falta. Distraia-me com as minhas viagens, com a ida a museus e galerias, perdi-me numa constante procura desenfreada para saciar este meu lado e até parecia que assim se poderia manter.
O que a fez regressar?
Há 3 anos percebi que teria de regressar a este caminho. O desassossego estava cada vez mais forte, indefinível e intolerável. Estava na Tate Modern em Londres quando senti de novo um apelo a criar, ainda sem saber que tal viria a acontecer através da pintura. Sentia que tinha de explorar outros caminhos. Uns meses depois procurei velhas telas guardadas e outrora iniciadas, e percebi depois que tinha outra maturidade. Não que me sentisse efusiva com tal opção, mas por entender que esta forma de expressão tinha em si um pacto entre diferentes sentimentos e sentidos.
Percebi ainda que o que eu fazia resultava, de forma positiva, naqueles que iam conhecendo os meus trabalhos. Percebi que fazia bem. A quem gostava. E isso era o que eu procurava.
Trabalha na área do Serviço Social. Habituou-se a viver outros dramas, outras ausências. É necessário sofrer para criar?
A arte é padecer tal como acontece na vida. Não se consegue dissociar. Assim como acontece com a alegria. Se sofremos, a arte tem de conseguir expressar esse sentimento. A arte não é, nem pode ser distante do sentir da sua gente, de quem a tenta fazer ou de quem a vê e sente. Só faz sentido se for presente, se envolver a comunidade, se cada um se rever nela. A arte somos nós na vida.
É necessário sofrer para saber sentir. Ser assistente social permitiu-me saber sentir. Obrigou-me a conhecer outras realidades e a respeitar cada forma de viver, mesmo que distante da minha forma ou sem forma para sentir. Ser assistente social é uma outra forma de expressão que também aproxima quem é visto como distante e sem interesse.
Mas nunca me habituarei a viver nenhum drama. Nem meu nem o de outros. Nunca me entregarei ao sofrimento. O meu desassossego nasce precisamente nesse ponto, o que transforma o drama no início de outro sentimento, mais sereno, mais aceitável, mais fácil de viver e de padecer.
Acho que nunca me habituarei a nada. Habituar é para mim uma má prática porque toma as coisas como garantidas, boas ou más.
O que é que retém da sua infância? Que ruídos? Que aromas? Que cores? Que rostos?
Amor. Parece fácil, ou até óbvio, mas não é. Da minha infância surgem memórias de muito carinho. Memórias doces. Os pais, a avó e as irmãs. O/as tio/as e o/as primo/as e a quinta em Abrantes. O cheiro a tigeladas. O respeito que tinham pelas diferenças e características da cada neta/filha. Eu sempre fui diferente das minhas irmãs, precisava de o ser para crescer, mas em momento algum questionaram ou impediram através de castigos que tal acontecesse. Andava sempre distraída, no “mundo da lua”, dizia-se naquele tempo. Hoje talvez me dessem Ritalina. E tenho em mim, que é aí, nesse lugar indefinido, que surge a criatividade. Ainda hoje não se dá tal liberdade, nem tempo nem espaço para se viajar pelo “mundo da lua”. Há quem precise dessas viagens para se conseguir expressar, para se conseguir enquadrar e viver de forma plena.
Da infância lembro-me da família, quase sempre. E dos tantos amigos que fiz e que mantenho. E sou grata por cada momento vivido.
Acontece que me detenho nos pássaros que passam, fixo imagens de céu e de nuvens e perco-me ainda tal como acontecia em criança. Não perdi esse dom…
Na sua pintura, o azul é quase dominante. Apenas na exposição inspirada na violência doméstica, há o vermelho da paixão e do sangue. Porquê?
O azul sempre foi dominante na minha vida. Sinto-me azul intenso e quem me conhece sabe que assim sou. Mas também já fui verde, amarelo e vermelho. Regresso quase sempre ao azul.
Usei de facto muito vermelho na exposição / instalação “Mal me quer, bem me quer, muito pouco ou nada”. Sem planear, ele foi surgindo à medida que ia construindo as peças. O preto também esteve sempre muito presente. A paixão, a dor e a morte seja física e/ou emocional existem na violência. Não existe amor. E ainda não descobri de que cor é o amor. As minhas representações envolveram muitos fios vermelhos como se levassem a uma teia sem hipótese de regresso. Acho que não poderia ter sido de outra forma. Ainda agora, quando crio uma nova peça para acrescentar à exposição, em cada novo espaço é criada uma nova peça, surge de novo o vermelho e o preto também. O processo de criação é quase sempre uma descoberta. Também para mim. E é isso que me atrai nestes processos.
Entretanto, os seus trabalhos já são reconhecidos lá fora. Foi selecionada para a Bienal de Arte de Londres 2021. Como tem sido este percurso?
Sim, é verdade! Fiquei extasiada com tudo o que me tem acontecido desde que me descobri e me dei a conhecer.
Em 3 anos muito aconteceu de forma surpreendente, diria. Apesar de todo o impacto e limitações resultantes desta pandemia, participei em inúmeras exposições, recebi diferentes convites e fui ganhando a convicção de que teria de percorrer este caminho. Este ano ousei conquistar outros territórios, através da pintura. Porque entendi que o que faço se tem revelado nos outros sob forma de esperança e de algum conforto. E este sentimento é precioso nos dias que correm.
Concorri a três open calls promovidas por entidades localizadas no Reino Unido e obtive de imediato um excelente acolhimento ao meu trabalho. Mais uma vez este meu percurso revelou-se de novo surpreendente.
Em fevereiro 2021 vi um trabalho meu ser selecionado e exposto pela galeria W1 Curates, através da apresentação digital utilizando para o efeito o edifício da Flannels localizado na icônica Oxford Street, em Londres, no âmbito da campanha Make it Blue. Em março 2021 a Boomer Gallery publicou o meu trabalho na revista Boomer Magazine, 1ª edição, The New Artist. E em maio foi a vez da Bienal de Arte de Londres selecionar o meu trabalho Q1 – Not even after one more day – [Quarantine Collection].
Sinto-me extremamente feliz por perceber que o que faço está a fazer sentido também para quem promove e divulga a arte lá fora. Fico mais feliz ainda por perceber que, sendo autodidata e ter dado a conhecer o que faço com a idade que tenho, não foi impedimento para este percurso tão rápido e preenchido. Sinto-me orgulhosa também por representar a minha cidade e o meu país.
Que projetos tem em carteira?
Vou continuar a fazer o que vou sentindo. Porque no dia que não sentir o que pretendo, regresso ao que já fui também. E vou continuar a divulgar o meu trabalho através de open calls e exposições que tenho já agendadas, este ano e no próximo também.
Talvez seja a única forma que uma artista autodidata tenha para concretizar tal objetivo.
Não é fácil ser autodidata no nosso país, assim como também não é fácil ser mulher e ser artista emergente perto dos 50 anos. O curioso é que tudo isto resulta lá fora. Parece que entendem, acolhem e incentivam de outra forma. É diferente. Consideram que uma artista autodidata pode ter muito, mesmo que não tenha a técnica e os conhecimentos ministrados por uma universidade ou outra escola. Privilegiando quase sempre o sentir e a espontaneidade.
E este reconhecimento tem sido precioso, já o tive aqui em Coimbra através da Galeria Sete no primeiro dia que entendi dar a conhecer o que fazia. E sou muito grata por tudo isto. Assim como também aconteceu com o Centro Cultural Penedo da Saudade e o Museu Municipal de Coimbra que acolheram e divulgaram o meu trabalho.
Este reconhecimento para mim importa porque reforça a utilidade do meu trabalho. Reforça a necessidade da sua existência e a tal aproximação a quem vê no que faço algo útil, belo e atraente. Reforça e aumenta o número de viagens à lua…
Estou a participar agora numa exposição coletiva na Bommer Gallery em Londres com 2 trabalhos que foram selecionados para o efeito. Gostava de poder criar mais, nomeadamente instalação ou outras formas de expressão, as quais viessem a refletir as minhas lutas pessoais, criativas e sociais.
Se lhe pedisse para escolher uma obra sua, qual é a que melhor serve de auto-retrato?
Escolheria “Another kind of me (2019)” porque representa a decisão que assumi num dia em que divulguei o meu trabalho ao mundo expondo tudo aquilo que escondia dentro de mim.
Uma tela cortada que em movimento revela a tinta que dá forma ao meu rosto. A cor-de-rosa, curioso…