Número 29

25 de Fevereiro de 2023

CAIXA ALTA

Maria José Santos: Cuidar a solidão

ANDREIA M. SILVA


“Não tenho problema nenhum. Estou é cansado. Todas as questões se me esgotaram, mas fiquei ainda vivo. De uma a uma esgotaram-se e agora estou só em face do universo. Reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Tudo o quê? É necessário que tudo seja novo, inteiramente novo e imprevisível.”

(Vergílio Ferreira, in “Alegria Breve”)


É uma aldeia como tantas outras. Também aqui há vidas inteiras que vão caindo no esquecimento, memórias que se dissipam na voragem do tempo. Muitas vezes o tempo dói — sobretudo quando uma solidão longa e árida habita os dias.

Maria José Santos é, há quase um ano, uma companhia que preenche o vazio na aldeia de Vila da Ponte, em Sernancelhe (Viseu), um desses lugares envelhecidos do Interior do país.

Tem 25 anos e é a primeira (e ainda única) cuidadora comunitária do país. Tem a seu cargo 13 idosos que vivem sozinhos na aldeia: auxilia-os na higiene, a vestirem-se e a despirem-se, nas idas ao centro de saúde ou à farmácia, vigia a toma da medicação. Mas há muito mais do que o apoio nas tarefas do dia-a-dia. Juntos sorriem, emocionam-se, conversam. Maria José é presença assídua, dia sim, dia não, na vida destas pessoas graças a um

projeto-piloto lançado pela associação Aldeias Humanitar.

 “Tem sido uma experiência única, maravilhosa e extraordinária poder ajudá-los. Sinto-me útil ajudando-os a criar estratégias para que consigam adaptar as suas rotinas às suas capacidades, criando mecanismos de adaptação que lhes permitem manter a autonomia e a independência. Deste modo, eles também se sentem valorizados e capazes, continuando a trabalhar a sua autodeterminação”, conta a jovem.

Natural de uma freguesia vizinha à freguesia da Vila da Ponte, Maria José Santos cedo percebeu que não queria deixar as suas raízes. Quis ficar e “ajudar” e, por isso, orientou a sua formação nesse sentido. Tem o curso profissional de Técnica Auxiliar de Saúde, que concluiu na Escola Secundária de Moimenta da Beira. Há cerca de um ano e meio, viu um anúncio de recrutamento da Aldeias Humanitar e tentou a sua sorte. Em boa hora o fez.

Nascida e criada em Vila da Ponte, Dioguina, de 79 anos, é uma das pessoas que a jovem acompanha. Já se habituou a estar sozinha, com televisão a debitar os rumores do mundo. Nestes últimos meses, Maria José levou-lhe a luz que faltava, ainda que a ausência de quem ama nunca deixe de doer. “Saudades? Tenho. O que posso fazer?”. E a pergunta dança no vazio.

A jovem sabe que mais do que os cuidados básicos, a grande necessidade destas pessoas é “o combate à solidão.” Por isso, — diz — procura sempre “ouvir as suas histórias, reflexões e desabafos”, fazendo-os sentir que naquele momento têm alguém que está lá para eles e que, quando não está presencialmente, estará sempre à distância de uma chamada telefónica.

A intervenção da associação é feita de forma gratuita às pessoas e sempre no propósito de integrar cuidados de saúde e sociais, partilhar recursos já existentes na comunidade e articular com as entidades e instituições da comunidade, por forma a otimizar o resultado da intervenção”.

O trabalho da Aldeias Humanitar desenvolveu-se a partir de um projeto-piloto, lançado em 2017 nos concelhos de Sernancelhe e Penedono, mas a associação pretende agora alargar o seu modelo de intervenção a todo o Interior, mobilizando “todos” para a luta contra o desamparo humano. E sempre no absoluto respeito pela privacidade, vontade e individualidade das pessoas.

“Tomar consciência da realidade da desertificação humana no Interior de Portugal e das suas consequências é importante — e há ainda um caminho longo por cumprir”, recorda a jovem.

As primeiras sementes foram lançadas à terra. Dioguina e as restantes 12 pessoas já colhem os frutos da presença de Maria José, esse rasgo de luz que afasta a solidão. Há ainda quem prefira ignorar o vazio. Mas estes rostos são também (os) nossos.