Número 27

3 de Dezembro de 2022

CAIXA ALTA

Martha Mendes – Quantas palavras cabem numa mulher assim?

ANDREIA M. SILVA

Foi através delas – as palavras – que Martha conseguiu fazer de uma rede social um espaço onde (ainda) há encontros bonitos, mesmo que as opiniões divirjam e os caminhos nunca se cruzem. Foi através delas, também, que se foi dando a conhecer da forma mais genuína. Sem filtros, sem a presença física – apenas as palavras, essas com que molda o mundo e a relação com os outros.

Porque se há palavras tão bonitas que comovem, há também pessoas, assim, que têm o condão de nos surpreender todos os dias, ainda que os dias sejam de incompreensão e de perda. Ela sabe-o. E sabem todos os que a seguem.

Martha Mendes nasceu em New Bedford, Massachusetts, nos Estados Unidos da América, mas as suas raízes estão em Setúbal, o lugar de todos os começos.

Viciada em informação, licenciou-se em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, é mestre em Jornalismo e Comunicação e doutoranda de Ciências da Comunicação. Viveu e trabalhou em Macau, como estagiária de um jornal de Língua Portuguesa, mas a vida já a levou a tantos lugares: desempenhou várias funções no âmbito da Comunicação e do Marketing – desde o jornalismo à assessoria de imprensa, passando pelo copywriting, produção de conteúdos.

A sua intervenção no Facebook é considerada por muitos uma das mais inteligentes. Porque é capaz de desarmar o mais sisudo com um humor fino e subtil, de comover com a poesia que vai lendo, de surpreender pela capacidade de combater as sombras, de resistir – e, ainda assim, agradecer à vida.

Sendo amante das palavras, sabe como poucos, usá-las, colocá-las no lugar certo, dar-lhes corpo, luz, emoções. E sabe bem o poder transformador que um texto, um poema ou uma canção têm para romper muros, silêncios, pudores, preconceitos.

Ao princípio era a palavra. Mas quantas caberão numa mulher assim?

– No seu perfil de Facebook diz que é viciada em palavras. Como se deu conta desse vício?

Acho que sou apaixonada por palavras, desde que me entendo por gente. Não me lembro da vida antes delas e não há nada de que eu goste mais do que as palavras, com a sua incomparável plasticidade, cheias de compartimentos internos, de quartos secretos, alçapões e sótãos. Sempre gostei de coisas feitas com palavras: livros, jornais, revistas, poemas, letras de músicas, provérbios, dedicatórias. E gosto da esperança que há nas palavras, que são a massa de moldar o mundo. O mundo só existe na tradução em palavras que dele é feita, por isso é que as palavras são tão poderosas: moldam a realidade e têm poder para transformar o mundo.

 – Que importância têm as palavras na sua vida?

Têm toda a importância: preenchem os livros que me acompanham desde sempre; dão corpo à escrita, que é a minha grande paixão; ajudam-me a entender o mundo e a explicá-lo às minhas filhas. Fazem a poesia – que é uma das coisas mais importantes do mundo. E, depois, têm a importância que têm para todos: são a ferramenta que usamos para dizer às pessoas que as amamos e que elas são importantes para nós e são o principal instrumento de comunicação com os outros.

– Estudou jornalismo na Faculdade de Letras em Coimbra. Porquê jornalismo?

Escolhi Jornalismo porque era um caminho que me permitia pôr em prática as minhas duas grandes paixões: a escrita e as pessoas. Eu sabia que queria passar o dia inteiro a escrever e um jornalista tem a profissão da escrita; para além disso, adoro conversar com pessoas, ouvir as histórias delas, conhecê-las, e ser jornalista é também a profissão dos contadores de histórias. Sempre achei – e continuo a achar – que o Jornalismo é a última das profissões românticas. A ideia de dar voz a quem não tem voz; de contribuir, diariamente, para a Democracia e para a construção de uma cidadania mais informada e, portanto, mais participada e mais capaz de decidir. Esta ideia de deixar o mundo um bocadinho melhor do que me foi entregue – e poder fazer tudo isto através da minha profissão – era um sonho muito bonito.

– Continua a estudar?

Sim, sempre. Estou a fazer o doutoramento em Ciências da Comunicação, na área das relações entre Jornalismo e Literatura. A minha tese é sobre o trabalho jornalístico do José Cardoso Pires. Nunca parei de estudar, fui da licenciatura para o mestrado, do mestrado para uma pós-graduação e, agora, para o doutoramento. Ando a estudar há 30 anos!

 – A sua intervenção nas redes sociais é considerada por muitos uma das mais inteligentes.  Numa altura em que tudo é tão fugaz e em que as redes sociais são, tantas vezes, sinal de populismo e desinformação, como é que se faz a diferença? Como se resiste?

Antes de mais, tenho de dizer o evidente: as pessoas são muito generosas e, muitas vezes, deixam-me sem palavras (o que é raro em mim!). Essa análise da minha intervenção nas redes sociais é muito generosa e, como tudo o que é generoso, também é muito exagerada. Fico muito feliz de saber que há algumas pessoas que gostam de ler o que eu escrevo – a escrita só se completa na leitura e, portanto, é muito bom saber que há quem leia e goste de ler o que eu escrevo – mas tenho uma postura de grande humildade em relação ao que faço. Acho que devemos ser sérios em tudo o que fazemos, mas não nos devemos levar demasiado a sério. De resto, não sei responder à sua pergunta, pois não tenho propriamente uma fórmula… Tento estar nas redes sociais como estou na vida: com respeito pelos outros, com abertura à diferença de opiniões e com interesse em ouvir aqueles que pensam de forma diferente, com vontade de aprender e de compreender os outros. Depois, tenho um defeito de formação – que me ficou da escola do Jornalismo – que me faz, sempre, cruzar fontes, dados e informações e ler várias perspetivas e abordagens, até me sentir capaz de escrever sobre alguma coisa. Somos bombardeados, a todo o instante, com todo o tipo de comunicação. Pelo meio, há muito lixo. É preciso filtrar.

– Setúbal é a sua casa?

 Absolutamente!

 – Vive em Coimbra e, no último ano, começou a correr maratonas. Como foi esse processo?

Eu ainda não corro maratonas – lá chegarei, está prometido, mas para já, só meias-maratonas! Eu comecei a correr de forma quase terapêutica, depois de passar por uma grande perda, e a verdade é que a corrida tem ajudado imenso. Eu sempre fiz muito desporto, mas a corrida tem um lado de superação individual que creio que nenhum outro desporto tem. Talvez tenha a ver com a ideia da meta… Uma pessoa corre 4 ou 5 quilómetros e pensa que não vai conseguir correr nem mais 100 metros, mas depois corre mais um quilómetro e outro e outro e, de repente, vê a meta lá ao fundo. Tu pensavas que não ias conseguir… Mas conseguiste. Tenho um companheiro de provas que me disse uma vez que, a dada altura, já não corres com as pernas, corres com a cabeça e o coração. Eu acho que é isso que diferencia a corrida dos outros desportos, esta metáfora que se aplica a quase tudo na vida: quando perdemos a força nas pernas, temos de continuar a correr com a cabeça e o coração – e só se pára na meta.

 – É mãe de três meninas. Que herança, que mundo, gostava de lhes deixar?

Aquilo que mais desejo é que as minhas filhas sejam livres, muito livres, para poderem ser muito felizes. A liberdade é a maior herança que podemos deixar aos filhos. Depois, espero que elas cresçam e apareçam! Que sejam mulheres envolvidas com o seu tempo, o seu mundo e as suas gentes. Que nunca sejam indiferentes, que nunca deixem de se insurgir contras as injustiças, que se incomodem com a dor dos outros, que lutem pelas coisas em que acreditam. Que tenham noção dos seus privilégios e que os honrem, garantindo que fazem a sua parte para deixar o mundo melhor do que o encontraram. Espero que tenham a capacidade de se pôr no lugar dos outros, que rejeitem os julgamentos, as superioridades e os moralismos, que sejam boas pessoas – e, pelo que observo, creio que são. Acho que fiz três excelentes seres humanos e esse é o grande orgulho e a grande obra da minha vida. A principal herança espero que a carreguem no peito e que a saibam proteger do mundo e da vida, que às vezes nos põem à prova, mas é preciso combater as sombras, resistir e não deixar que elas nos corrompam, nem nos vençam.