Dizem que não se pode compreender o presente sem se conhecer o passado. Também há quem diga: — Quem ignora os erros do passado está condenado a cometê-los. A ciência que estuda o passado chama-se História. Esta ciência usa fontes de informação para construir a sucessão de processos históricos, como, por exemplo, fontes escritas, entrevistas. Depoimentos de pessoas que viveram acontecimentos relevantes do passado, e outros registos. Mas qual é a credibilidade desses depoimentos? Relatam acontecimentos particulares, tal como os recorda a fonte. Pode dizer-se que o historiador é como um general que observa a batalha do alto de uma colina. Recolhe vários depoimentos para criar uma visão global. Mas em que colina é que ele está? Qual a qualidade da sua visão? E integrado em que exército?
Cada soldado só atinge o seu campo de visão, a sua área de tiro. Cada general o seu plano militar. Mesmo agora, no início de mais uma guerra imperialista, com tantos jornalistas no campo de batalha, sabemos mais do bunker do que do terreno. Mais do que ele quer ver, do que aquilo que vê. O espectador não distingue o texto lido da imagem que vê, não percebe os locais nem as datas da sua captação, não identifica as armas nem as vítimas. As imagens são, na maior parte das vezes, a ilustração de um texto faccioso. Se o espectador vive numa ditadura, as informações são propaganda governamental e nenhuma informação é contraditada.
Lembremo-nos da narrativa de Waterloo por um dos seus participantes, Fabrice del Dongo, na Cartuxa de Parma, de Stendhal.
Evadido da prisão, o jovem Fabrice quer lutar ao lado dos franceses e procura o regimento cuja farda usa. Encontra soldados por todo o lado. Alguns estão mortos e acontece-lhe matar um cavaleiro prussiano. Ajudado por uma rapariga consegue uma boa montada. A acção decorre ao longo de dois longos capítulos, mais do que um dia e está recheada de peripécias. Fabrice procura o Imperador e, em determinado momento, vê um general que percebe ser o General Ney. Finalmente junta-se a um grupo que é comandado por um oficial. Aproxima-se dele e pergunta:
— Monsieur, c’est la première fois que j’assiste à la bataille, dit-il enfin au maréchal des logis; mais ceci est-il une véritable bataille?
A Batalha de Waterloo decorreu a 18 de Junho de 1815, na Bélgica. Um exército francês comandado por Napoleão foi derrotado pela aliança inglesa-prussiana. Esta batalha foi a última de Napoleão e selou a sua derrota. Fabrice del Dongo foi um dos seus participantes e não percebeu nada do que aconteceu. Nem sequer se se tratava de uma verdadeira batalha.
Para perceber o que se passa atualmente com a invasão da Ucrânia pela Rússia é preciso conhecer a implosão da União Soviética. Quem quiser perceber isso tem de conhecer a Guerra Fria. Não se pode perceber a Guerra Fria sem conhecer a Guerra Quente, a Segunda Guerra Mundial. Esta é impossível de entender desligada da Primeira Guerra, do Tratado de Versalhes, da Revolução Russa, da III Internacional. Não se pode conhecer nada disto sem saber o que foi o Congresso de Viena e quem eram as potências que asseguraram cem anos de estabilidade e domínio reacionário na Europa. A saber: a Inglaterra e a Áustria, a Prússia e a Rússia. Não se pode saber nada sem estudar a história da expansão colonial, a primeira mundialização. Não se pode saber nada disto sem saber a história da Comuna de Paris. A Revolução Francesa. A constituição do Império Russo. A Queda do Império Romano do Oriente. A história dos Persas. A história dos Árabes. A rota da seda. A Guerra do Peloponeso. A história da China. O Império Mongol e Genghis Khan.
Mas o que sabemos desses acontecimentos. Relatos parcelares. Visões globais. Geralmente escritos pelos vencedores: Brecht, no período mais negro do seu exílio, ou Paulo Quintela, um dos seus tradutores escreveu
Sempre e sempre escreve o vencedor a história do vencido
E o que fica, é a mentira.
A história da II Guerra Mundial foi escrita pelos vencedores. Os Aliados. Mas os vencedores eram a) um grande Império decadente, a Inglaterra b) o maior Império da História, os Estados Unidos da Améria c) um Império atípico, a Rússia, no seu período Soviético d) a França, uma espécie de relíquia de família que se transporta para dar brilho às fardas. Cada um contou a História à sua maneira. Se Brecht tinha razão a História que contaram consistiu em várias mentiras, várias versões. A história contada pelos nazi-fascistas devia ser outra horrível mentira. Brecht esqueceu-se de dizer que a história contada pelos vencidos não era a verdade. Mas outra mentira. Neste caso uma mentira horrível e criminosa, feita de superioridade racial e de extermínio. Só se conheceu a história da Segunda Guerra Mundial quando quase todos os combatentes tinham morrido e se abriram os arquivos do Kremlin. Mas a história feita a partir de Arquivos de Estado tem os seus problemas. Um deles é que os documentos são lidos por gente que, em regra, combateu o regime deposto. Para perceber um dos outros motivos que fazem duvidar dos Arquivos é preciso contar uma estória que li no livro de Edward Luce, The retreat of western liberalism : estava-se em 1989 e caía o muro de Berlim. Um grupo de estudantes de Oxford confraternizava com um grupo de Berlim Ocidental que dividia com eles uma garrafa de champagne. No meio da euforia nem toda a gente celebrava. Para os que de uma ou outra forma tinham acreditado no comunismo soviético, aquela era uma hora de perplexidade. Para alguns era “a maior tragédia geopolítica do século XX”. O autor desta frase estava a 150 kms de Berlim, na sede da KGB de Dresden, e queimava documentos. Chamava-se Vladimir Putin e queimava documentos.
E tu, onde estavas leitor hipócrita? Ou ainda não tinhas nascido? Ou eras tão nova que não sabias o teu lado do muro?