As gavetas são lugares onde a memória se aconchega e o passado acorda quando as abrimos. Desta vez, o passado saltou sob a forma de um postal. O passado dos meus vinte anos.
Um dia, por meados de 1962, entrei, como habitualmente, na Brasileira e o Sr. Henrique disse-me: tenho aqui um postal para si.
Fiquei surpreendido. Nunca tinha recebido correspondência no café. Mal olhei para o postal, antes de me sentar e pedir um café ao Sr. Damião, o coração bateu forte. O remetente dizia: Uriel de Oliveira, Reduto Norte do Forte de Caxias. No canto superior direito, um carimbo assegurava que a expedição do postal fora autorizada pelos carcereiros: POLÍCIA INTERNACIONAL E DEFESA DO ESTADO.
No verso um breve texto, aparentemente inofensivo e que, por essa razão, tinha sobrevivido ao olhar inquisitorial da censura:
“Querido Abílio,
Estou bem.
Cumprimentos para ti e para toda a malta e muitos abraços.
Até breve.”
Assinavam três amigos, companheiros de vida e de luta. Um deles, o que assinava em último lugar, era então meu camarada de célula:
Uriel de Oliveira, Alfredo Fernandes Martins, Eduardo Casais.
Não me recordo quantas vezes li, sofregamente, aquelas linhas. Tão sofregamente que só à segunda leitura dei conta do que verdadeiramente me diziam:
Querido Abílio,
Estou bem ?
Cumprimentos para ti e para toda a malta e muitos abraços.
Até breve ?
Lembro-me que foi o jornalista Albano da Rocha Pato, pai do Rui Pato e meu companheiro de mesa, a primeira pessoa a quem, ali mesmo, mostrei o postal. Nesses meses de 1962, na Brasileira, havia mais cadeiras vazias e menos amigos no canto esquerdo da Brasileira: uns estavam presos, outros tinham partido para a guerra, outros para o exílio.
O Uriel e o Alfredo já nos deixaram há muito tempo. Ao Eduardo, que mais tarde se exilou, perdi-o de vista há muitos anos também. Nada sei dele, infelizmente.
Dias depois recebo outro recado. Também na Brasileira, minha segunda casa, meu poiso de amigos, meu lugar conspirativo e meu refúgio. Desta vez, porém, o recado que veio das sombras foi-me transmitido oralmente, na pessoa de um miúdo, cujo pai estava preso no Aljube. Veio ter comigo e disse-me que estivesse descansado, porque a PIDE não sabia nada, ou pelo menos não sabia (ainda) o suficiente a meu respeito.
O miúdo tinha uns onze anos, ninguém desconfiaria dele. Por isso o escolheram.
Lembras-te, Luís Carlos Januário?