“Não sabemos ainda como
perdemos as asas: se
nos lancis dos terraços
em voo sobre os pomares de amendoeiras, se
nas sobrevoadas cumeadas
dos bosques de bétulas em novembro, se
nos olhos de água, se
na puta da vida emitindo recibos
e assinando avenças. Sabemos apenas
que nos olhamos hoje
e nenhuma máscara
nos cabe
no rosto.”
(“Nenhuma máscara”, José Carlos Barros)
Cresceu num mundo com poucos livros e os que tinha em casa nunca lhe despertaram grande interesse. Judite Rei sempre preferiu viajar fora deles, transpondo as imponentes montanhas do Barroso, em Trás-os-Montes. Por isso, mal chegou aos 18 anos, voou.
“Quando terminei o secundário não quis ir para a universidade. Queria ter a minha liberdade e conhecer grandes cidades. Foi uma escolha minha, de que não estou arrependida”, diz.
A vida dos pais não era um caminho que quisesse seguir: viu a mãe cansada de dias passados numa fábrica de cordas para redes de pesca; o pai sempre a trabalhar as terras. Judite ainda tentou a sorte numa loja de roupa, mas “não tinha paciência para aquilo”, recorda.
Foi para Braga e fez-se à vida: primeiro a vender peças para papa-reformas; depois a lavar camiões numa empresa de transportes. Foi naquele período que começou a pensar que poderia ser ela a tomar o volante. Tirou a carta de pesados e hoje, com 26 anos, é uma das poucas mulheres a conduzir camiões TIR, transportando com ela, Europa fora, sonhos antigos e canções.
“Sempre gostei muito de cantar. Cheguei a ser vocalista num grupo de baile lá da aldeia, em Beça, mas tive que sair quando me mudei para Braga. Agora, canto para quebrar a solidão das viagens.” Nestas incursões faz dupla com o namorado, parceiro de viagem no trabalho e na vida.
Nos últimos meses, começou a gravar as atuações dentro da cabine do camião e a partilhá-las com uma comunidade privada de motoristas – muitos deles já se cruzaram com ela em alguns pontos do caminho.
Há quem lhe enalteça a voz, a afinação, a emoção com que canta. Mas há mais do que isso: a coragem e a determinação em quebrar estereótipos.
Judite já perdeu as contas às viagens que fez dentro de um camião: a noite, a solidão, o medo de uma vida que se conta ao quilómetro. Mas há nela a frescura de um dia que ainda agora começa.
Agora que já sentiu o sabor da liberdade, pensa em regressar a casa “quando tiver a vida orientada”.
“Gostava de viver na minha terra e ter uma vida mais recatada. Boticas tem a minha gente”, confessa.
A liberdade não está nas estradas que a separam do mundo granítico onde cresceu – sabe-o agora. “Está no cheiro da terra – a que era lavrada pelo meu pai; está na aldeia onde todos se conhecem” e onde a manhã pode despontar num passeio pelo monte e o entardecer chegar aconchegado no lume da lareira. E onde pode continuar a cantar até que a voz emudeça. A liberdade está nessa viagem de regresso a casa.