Fractura Exposta

27 de agosto 2022

Mulheres no rio

RITA SERRA

Serpins, 40 graus. Fui com a minha filha estrada fora, até à praia fluvial, a pé. O alcatrão queimava e buscávamos o alívio do rio. Estava cheio de mulheres e crianças. Havia salpicos por todo o lado. As mães atiravam-se para a água vestidas. Ciganas. Na areia, a matriarca de Serpins. Sentada a observar, estava ao telemóvel, com a máscara cirúrgica pendurada numa orelha. “Olhe que a sua filha está a ir pela água”! Gritou, comigo em sobrecarga emocional. Ah! Despertei rapidamente. Vi-a na plataforma de mergulhos sem prancha, onde as crianças fazem habilidades. Queria empurrá-las para as ver mergulhar, e adverti-a que não iam gostar. Olhavam-na com surpresa, e ela estava muito, mas muito feliz. Eu procurava prevenir eventuais quedas, quase a chorar. A chorar, pela alegria contagiante do grupo, e por me sentir tão fora dela. Tão fora, mas incapaz de me afastar, como se tivesse alguma alegria por osmose. A minha filha lá no meio, delirante. Uma mãe falou com ela, mas ela não percebeu. Para mim tudo era muito. Muito movimento. Muita emoção. Muita atenção à minha filha. Uma terrível sensação de bloqueio, a de não poder sentir-me parte daquela festa. Uma sensação conhecida, aterrorizante, paralisante. A mesma que sinto ao ver pessoas a dançar num casamento. A fazerem figuras parvas com anteninhas na cabeça e coisas bem ridículas que piscam, a fazerem movimentos para cima e para baixo, coordenadas e descoordenadas, a tirarem os sapatos, depois do dia em cima deles. E eu sentada na mesa com (ou sem) os meus. A minha filha delirante com as luzes. Frequentemente, na mesa onde estou, estamos todos sentados. Porque os meus não se dão com multidões. Com a minha filha nunca me sinto de fora, com a minha família também não. Mas queria partilhar destes momentos. Queria sentir que em vez de observar, faço parte daquela maralha. Parece tão divertido.

Dizem que as pessoas autistas têm uma fraca teoria da mente1. Dizem que temos dificuldade em adivinhar o que vai na cabeça das outras pessoas. Em saber que têm informação diferente da nossa. Que são diferentes de nós. Talvez seja por isso que há um choque inevitável, mas não antecipável.

Rapidamente vi a separação das águas. A matriarca de Serpins chamou as filhas. As netas brincavam com crianças ciganas. Uma delas estava com a boia duma serpinense. “Saiam da água”, chamou a avó. Vamos embora. Entrega a boia. Todas as crianças na areia. Todas menos a minha filha.

Sermos autistas perturba um pouco a separação das águas. As ciganas percebem que somos de alguma forma marginais, apesar de não saberem bem porquê. Veem que não fugimos. Não fui depilada para a praia. Curiosas, perguntaram-me se tinha marido. Estavam muito atentas a tentarem perceber-nos. Perguntaram-me por outras praias. E depois partimos todas.

Pensei no livro do Robert Sapolsky2 sobre a biologia humana no nosso melhor e pior, mais precisamente, nas mães babuínas. Uma manhã, no Quénia, Robert viu duas crias a brincar, de mães com status social diferente. A mãe de status inferior foi buscá-la e afastou-a. Vinte anos depois voltou ao grupo, e as crias, já velhinhas, continuavam a exibir o mesmo comportamento que aprenderam naquela manhã. Pensei no livro de Pyotr Kropotkin3 sobre a ajuda mútua, e como esta se torna um imperativo biológico perante extrema necessidade. Pensei, se uma criança cigana se afogasse, qualquer mãe se atiraria para a água. Nestes casos, não ajudar requer treino social.

Pensei na matriarca de Serpins, que tantas vezes vi nas festas a dançar, e em como as suas filhas são vistas por serem exuberantes, andarem juntas, dizerem palavrões e cuidarem umas das outras, sempre respeitando a mãe. Não precisei de mais. Ouvi uma delas, na praia, no final do dia, a dizer o seguinte: “quando estava no hospital em trabalho de parto e o meu filho estava a asfixiar, e me diziam que ele estava era com fome, e eu já não o sentia, eu gritava e insultava os médicos. Acharam que eu era cigana, mas eu estava era com raiva”. Pensei no romance sobre as pessoas serranas “Quando os lobos uivam”, de Aquilino Ribeiro4. A serra era conhecida por ser o lugar onde, no final do dia, o status e classe se resumiam a comerem todas a mesma sopa, umas mais rotas e outras mais cosidas5. Pensei como nós, autistas, éramos um estranho elo de ligação naquela praia, a falar com as mães e crianças dos dois lados.

Não posso parar de pensar: será que sabem a sorte que têm de estar naquela festa do rio? De biologicamente, não se sentirem à margem? Será por isso que têm de pôr limites? Eu quero expandir-me socialmente. Sou pró-social e empática, nada raro entre mulheres autistas6. Fui diagnosticada aos 42 ao interrogar-me pela minha filha de 27.

“A grande família universal dos humanos é uma utopia digna da lógica mais medíocre”, dizia Maldoror8. O que nos uniu a todas naquela tarde de calor foi o rio. E a água do rio não passa no mesmo lugar duas vezes.



1 A teoria da mente refere-se à capacidade de compreender os desejos, intenções e crenças das outras pessoas, e nas crianças alistas desenvolve-se entre os 3 e os 5 anos. Assume-se que as crianças e pessoas autistas têm um desempenho inferior no teste padrão que avalia esta capacidade (teste Sally-Anne). No entanto, estudos científicos mostram que esta assunção é muito controversa, e que tanto as crianças autistas como as alistas podem ter dificuldades com tarefas relacionadas com a teoria da mente.

2 Robert Sapolsky (2017). Behave: the biology of humans at their best and at their worst. Penguin Press. New York.

3 Pyotr Kropotkin (2006). Mutual aid, a factor of evolution. Dover Publications, Inc. New York.

4 Aquilino Ribeiro (2011). Quando os lobos uivam. Bertrand Editora. Lisboa.

5 Serpins é uma freguesia na Serra da Lousã. Foi o primeiro lugar onde as terras comuns (baldios) foram ocupadas pelos Serviços Florestais, à revelia das populações locais. Em Serpins, na Serra do Sobral, ficou documentado o grito das mulheres: “isto é nosso!”, quando vieram os militares. Nenhuma mulher, homem ou criança de Serpins participou na florestação dos baldios (Adriano José de Carvalho, 1911. O Regime Florestal em Serpins: Exposição e Crítica. Imprensa da Universidade, Coimbra).

6 Sobre a relação entre autismo e empatia, consultar o excelente texto de Karla McLaren https://karlamclaren.com/empaths-on-the-autism-spectrum-part-1/

7 As mulheres autistas são frequentemente sub-diagnosticadas precisamente por características que são interpretadas como timidez, e pela sua capacidade de procurarem conformar-se com as normas sociais, frequentemente com elevadíssimos custos emocionais. Para as que desejarem saber mais, podem consultar o portal da AWN – Autistic Women and Nonbinary Network (https://awnnetwork.org/).

 8 Lautréamont/Isidore Ducasse (2009). Os cantos de Maldoror: Poesias I & II. Antígona. Lisboa.