Número 22

28 de Maio de 2022

PRAÇA DA ALIMENTAÇÃO

Mundanices

MORTICIA/PERLITA

O sangue dos outros

Morticia moribunda

A Primavera, finalmente, chegou. Despontam as folhas da minha faia sanguínea. Não nascem verdes. Brotam como mortas fora de estação.

Que confusão esta, a dos equinócios. Desperta na mente humana a ideia sórdida que nascer requer sacrifício.

Conta-nos Igor Stravinsky que na Rússia pagã, uma bailarina dança até à morte para consagrar a Primavera. Mas de quem é o sacrifício? É da bailarina, ou foi roubada pelos velhos que testemunham o momento?

A questão não é menor. Teremos nós, espectadores do sacrifício dos outros, de enaltecer o seu desempenho? Ou teremos de impedir tal loucura?

Não basta o sol? Precisamos de cabritos malcozinhados para espiar os nossos pecados?

Comemos os pecados que espectamos. Como os digerimos marca quem somos. Glória ou vergonha. Só a vergonha termina a dança. Para nascer outra coisa qualquer. Fui.

*

Perlita

Errar é um ato de seres errantes.

Seres que vagueiam.

Seres que deambulam pela terra.

Não estão perdidos porque não têm mapa.

Caminham na lama da existência.

A lama primordial não suja.

A única lama que suja é metafórica.

A lama a sério enaltece, embelece e enrijece,

Dá mesmo para fazer construções e casas.

Nunca me senti suja na lama.

Nunca me senti porca,

Nem pérola,

Ou às vezes pérola.

Às vezes pérola sem porcos.

Às vezes pérola invisível,

Às vezes pérola desperdiçada.

Nunca pérola caçada.

Uma pérola com vontade própria,

Que resiste à digestão da ostra,

E a obriga à produção de nácar.

Uma pérola protegida na concha,

Contra o mar tempestuoso,

Que protege a ostra por dentro

Contra inimigos irritantes.

Uma pérola na garganta da ostra,

Que se desprende sem querer,

E chega a terra trazida pela corrente.

É aí que se afunda na lama,

É aí que rebola escondida,

Como uma porca perlada,

Sem que ninguém se dê conta.

*

Tarzan teórico

“Desce, não é tão mau como parece”, dizia com voz encantadora, incentivando-o a vencer o medo. Cumpri o papel de sereia, e o meu amado desceu à volta, por um caminho entre ervas e silvas.

A descida era um puro deleite. Parecia um jogo de plataformas, no fim de cada socalco o vazio, onde apareciam degraus insuspeitos, na forma de pedras encravadas no muro.

Assim chegamos à cascata.

O momento é solene. Claro, depende da perspetiva e da escala. Não se trata do Niágara. Podia facilmente ser chamada de cachoeira. Mas escondida no meio da serra, não está nada má. Fiquei a ver aquelas águas espumosas escorrerem pelo xisto molhado, a ouvir o som, a saborear o momento.

Fui novamente pelo meu companheiro. Queria partilhar aquele momento mágico. Contemplar a beleza juntos.

Ainda a tremer de medo, mas orgulhoso de si, juntou-se a mim, tolerando aos poucos o toque. Adrenalizado, imaginou-se a subir a cascata, com umas cordas, alguma prudência, atadas a duas árvores no caso de uma partir com o peso, em modo de escalada, a pôr os dedos nos misteriosos triângulos que se observavam bem-talhados na pedra.

Tendo em conta as dificuldades reais em levar a cabo esta aventura, rapidamente nos satisfizemos em risos com a imaginação. Fá-lo-ia em teoria. “Então és um Tarzan teórico”, respondi eu. Mais risos. E viemos embora calmamente, com destino ao nosso almoço.

*

Too much nature

“É hoje que me dás um café?” Perguntei no WhatsApp ao meu amigo. “Sim!”, responde. Perfeito. Faz um ano que estivemos juntos, vou de carro vê-lo. Atravesso um limite de freguesia e vejo a sua casa na curva da estrada. Espreito as cabras e as galinhas livres, e entro. Toc, toc. A porta está aberta. Passou a manhã a arrumar para eu poder entrar. “Que bom, a minha vinda já serviu para alguma coisa”, digo. Risos. Ele mostra-me os avanços na recuperação: o laboratório luminoso, as escadas feitas por ele, o quarto que terá um tanque de peixes e aquecimento solar.

Jack é um daqueles ingleses que não veio para Portugal fazer amigos. Apesar de ter vivido os 70s na Inglaterra, não é um homem da contracultura, mas uma espécie de tecno-rural. Habituado a fazer de tudo, estende a sua atividade doméstica através da ciência – é bioquímico e informático. É o seu bastião de racionalidade.

Mostro-lhe a banda britânica que me encanta, cheia de raiva frenética e nervosismo. This is from your hometown, digo eu. That’s why I left, responde ele. Mais risos. Inevitavelmente a conversa avança para a ciência. Não sei como, fomos parar ao determinismo. Explico que será uma conversa difícil, pois não parto das categorias como são habitualmente definidas, nem dos termos associados, como vontade própria.

“Num universo determinístico não pode haver nenhum elemento não determinado”, diz-me. Respondo que não sou muito fã do caos e do efeito borboleta. “Como assim?” Digo que prefiro a interceção de eventos muito significativos mas não relacionados, como no filme Magnolia de Paul Thomas Anderson. Não viu o filme, e lá estamos nós no meio de explicações e

(continua)