Nancy Cunard morreu no Hôpital Cochin de Paris, em Março de 1965, à beira dos 69 anos. Estava presente o seu amigo Raymond Michelet. Ele disse, por três vezes, as palavras de Beckett: Fin de partie. Mas ela já não ouvia. Tinha escrito incessantemente nos três dias anteriores, depois de a encontrarem caída, nas ruas. Poemas e cartas. Muitas cartas que continuaram a chegar aos destinatários, dias após o seu enterro discreto, no Père Lachaise. Michelet tentou captar pela última vez o brilho dos seus olhos azuis. Mas só viu sofrimento sem consolo. Nancy fora tanta coisa, que é quase obsceno fazer uma escolha para a apresentar. Um símbolo dos Loucos Anos Vinte, em Paris e Londres. Uma mulher emancipada. Uma poeta. Uma presença constante nos tabloides dos anos 20 e 30. Uma musa para Ezra Pound, T.S. Eliot, Samuel Beckett, Louis Aragon, Tristan Tzara, Oskar Kokoshka, Manuel Ortiz de Zarate, Man Ray, Cecil Beaton, Constatin Brancusi, Curtis Moffat, Aldous Huxley, Neruda, Georges Sadoul, William Carlos Williams. Uma editora, a mulher que, sozinha, criou em 1927, em Réanville, numa propriedade da Normandia chamada Le Puits Carré, a editora The Hours Press, que em três anos publicou 24 títulos de 10 a 60 páginas, com as capas, o papel e a sua gramagem, os tipos, as manchas, tudo escolhido por ela, responsável desde a escolha dos originais até à tipografia. Editou F. Scott Fitzegerald, John dos Passos, Proust, Pound, Hemingway, Hart Crane, Eliot, Henry Miller. Alguns dos exemplares estão expostos no Victoria and Albert Museum.
A realização mais importante de Nancy Cunard foi o livro Negro, uma antologia enciclopédica de textos, seus e de convidados, editada em 1934 e preparada ao longo de seis anos. Negro é um poderoso volume de 855 páginas, 200 entradas, 150 contribuições e 400 ilustrações. Foi o propósito de uma vida. Aquilo que os mais próximos dos seus amigos julgaram impossível de ser realizado. Uma história social e política das populações negras na América do Norte, Central e do Sul, na Europa e nas Indias Ocidentais e, claro, em África. Negro, Antologia, iniciou os estudos culturais Afro Americanos, foi provavelmente um dos primeiros textos transculturais e um coerente apelo contra a discriminação racial.
Negro foi realizado desde o Verão de 1928 até 1934, período em que Nancy teve uma relação conturbada com o pianista negro norte americano Henry Crowder. O par trabalhou em conjunto em Réanville e viajou pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, sempre com grande escândalo na imprensa, chocada pelo facto de se tratar de um par misto e pelo comportamento inusitado de Nancy Cunard.
Negro teve uma discreta receção, poucas notas críticas, escassas vendas. A maior parte dos exemplares foi destruída, alguns anos depois, nos ataques aéreos alemães sobre as oficinas londrinas de depósito de livros da Wishart.
Tinha um planeamento muito completo e coerente, com capítulos inovadores sobre a música negra e o Jazz.
Os principais círculos negros norte-americanos conheceram o livro, estimaram-no e divulgaram-no. A um negro que lhe perguntou se aceitava um donativo, Nancy respondeu:— I am your mother. There is no payment due.
Nancy Cunard chegara a Paris com vinte anos, nos anos que se seguiram à Grande Guerra. Em Londres, no fim da adolescência, ela pertencera a um grupo de acção cultural, uma tertúlia que se auto apelidava de Corrupt Coterie, que reunia num Restaurante em Percy Street. Igualmente se aproximara do grupo de Virginia Woolf, o Bloomsbury group a quem, jocosamente , apelidava de Bloomsberries e sobre os quais escrevia serem “ excêntricos, insolentes, arrogantes, egoístas e ocupados em relações pessoais neuróticas”. Através de um namorado, Windham Lewis, esteve perto dos Vorticistas, a escola que defendia o artista sem emoção, uma máquina à procura do ponto de máxima energia, o vórtex. O Vorticismo teve em Portugal expressão no grupo Presença, ao qual Pessoa pertenceu e corresponde ao Sensacionismo, que teve em Álvaro de Campos um cultor de relevo.
Seja como for, depois da guerra, o centro inovador das artes e da boémia deslocara-se para Paris. E Nancy com ele.
Ficaria oito anos em Paris. Contagiada e influenciando o vanguardismo, esse estado de permanente surpresa e invenção, dadaísta e surrealista, cubista e expressionista, futurista e modernista, essa loucura criativa que caracterizou a Paris da década do jazz.
Nancy é descrita sempre nos mesmos termos: extremamente magra, caminha de forma surpreendente, com as pernas em anteversão, como se progredisse numa linha à borda de um abismo. Elegante e graciosa, com o cabelo curto e a pele muito clara. Tem olhos intensamente azuis. Veste-se de forma surpreendente. Fala em surdina. Os que se aproximam para a ouvir, dizem que murmura, palavras valiosas como as que as celebridades soltam no leito de morte.
É a garçonne. A mulher emancipada. Chique, elegante, inacessível.
Permanentemente envolvida em festas e bailes. Dança e bebe champanhe. Bebidas esquisitas e champanhe. Muito champanhe. O americano William Carlos Williams “ que não era um mulherengo” e tinha uma enorme fotografia dela no seu sótão criativo, escreveu que “nunca a vira ébria, nem sóbria”.
Nancy planava num estado intermédio, mudando de namorado da tarde para a noite, dançando até de madrugada e acabando a noite a beber num dos bordéis que se mantinham abertos em Montmartre.
Louis Aragon viveu com ela um ano, escreveu para ela Blanche , ou l’Oubli e Le Cul d’Irene. Foram para Veneza em 1928, onde, abandonado, foi salvo do suicídio por um amigo. Nancy achava os surrealistas “misóginos e aborrecidos”. Gostava de Man Ray, do qual guardamos a fotografia que mais frequentemente a lembra, com os longos braços envoltos até aos ombros por braceletes artesanais africanas, uma das suas imagens de marca. Aragon ia com Nancy para Marselha e outros portos do sul, à chegada dos barcos de África, e colecionavam peças de arte africana. Quando se separaram, ele escreveu Poème à crier dans les ruines, um grito que ainda hoje se pode ouvir. Nas ruinas, precisamente.
Em 1928 Nancy publica o seu terceiro livro de poesia, Parallax. Uma crítica escreve que é melhor do que The Waste Land, de Eliot.
Os inúmeros seguidores imortalizam-na através da sua criação literária. Um best seller da altura, The Green Hat, de um tal Michael Arden, hoje esquecido mas que em 1924 vendeu centenas de milhares de exemplares, e que era um amante desprezado, toma-a como heroína e retrata-a como “a inocente sedutora, um corpo pagão numa mente pura, uma sereia santa”.
The Green Hat foi levado ao cinema com Greta Garbo como Nancy. Arden escreve: — Os lábios eram de seda vermelha e eu pensei que beijá-los era beijar o infinito.
Em 1927, quando deixa Paris por Réanville, quase não come. Dedica-se febrilmente à editora. Quando os amigos a visitam prepara pratos de vegetais colhidos na hora. A yegg or nothin’ for you and me, é o velho adagio do Leicestershire que adoptou.
Nesses anos, em que publica os amigos com grande critério e bom gosto, conhece Crowder e cresce nela o que era uma característica que vinha do fim da infância. Uma consciência dolorosa da desigualdade e da injustiça social. E agora também do racismo. A edição de Negro aproxima-a do jornalismo americano da ANP, a Associated Negro Press, de Claude Barnett. Escreve artigos muito combativos a favor dos jovens de Scottsboro e depois sobre a Etiópia. Escreve também para The Guardian. A crise da Abissínia fá-la denunciar o perigo do fascismo de Mussolini. Envolve-se profundamente na guerra civil de Espanha. Cria as plaquetes chamadas Os Poetas do Mundo Defendem o Povo Espanhol onde escrevem Tzara, Aragon, Langston Hugues, Auden e tantos mais. As plaquetes são editadas em três línguas e os fundos entregues aos republicanos. Faz um inquérito aos escritores a quem pede que assumam um compromisso (take sides) sobre a guerra civil espanhola. Obtém cento e quarenta e oito respostas. Cento e vinte e sete manifestam-se a favor dos Republicanos. Cinco a favor de Franco , entre os quais os seus amigos Evelin Waugh e Ezra Pound, numa patética declaração que levou ao fim inexorável da sua amizade. E dezasseis declararam-se neutros, entre os quais T.S.Eliot, HG Wells, Aldous Huxley, Vita Sackville-West e George Bernard Shaw. Ela comenta:— Inconcebível que um intelectual seja pró fascista e é sintoma de degenerescência ser a favor de Franco.
A vitória de Franco na guerra civil marca-a profunda e definitivamente. Acompanha o êxodo dos espanhóis após a derrota. Denuncia os fuzilamentos executados pelas tropas franquistas, primeiro, e depois o tratamento desumano que a República Francesa reservou aos exilados, nos campos de concentração em que os acantonou.
Encontra Beckett e este reconforta-a, mas regista:— Nancy não se libertou do drama espanhol.
Previu a Segunda Guerra Mundial. Voltou a Londres onde participou nas manifestações dos mineiros, duramente reprimidas. Sentindo-se francesa, exilou-se no Chile, seguindo Pablo Neruda, e em seguida voltou a Londres, onde fez trabalho civil durante a guerra.
Depois da vitória aliada e da libertação da França ocupada, volta a Réanville. A sua casa fora loteada pelos alemães e saqueada entre colaboracionistas, nazis e…vizinhos. Os quadros, as braceletes, os desenhos, as peças da impressora, tudo saqueado. As cartas das celebridades que colecionara, desaparecidas. Os materiais recolhidos para Negro. As cartas da Guerra Civil Espanhola. A Câmara colaboracionista e os ocupantes nazis tinham escolhido a casa de Nancy Cunard como o alvo da destruição punitiva. Toda a aldeia estava incólume, exceto Le Puits Carré.
No resto dos seus anos Nancy Cunard dedicou-se ao apoio aos resistentes espanhóis. Foi, para si, uma segunda guerra. Visitando presos, conseguindo libertações, apoiando comissões, dando apoio jurídico e material a comissões de direitos humanos em Espanha.
Nos anos 70 teve uma biógrafa empenhada, Anne Chisholm. Mais recentemente, na Columbia University Press, Lois Gordon escreveu outra biografia, com mais de 400 páginas de texto e de fotografias, com 70 páginas de notas. Nancy atravessou as duas guerras mundiais e foi um símbolo dos loucos anos vinte. Emprestou o seu nome , inteligência e talento a grandes causas: a luta contra o nazi-fascismo e a história transcultural dos negros. Encontramo-la na literatura, na escultura e na pintura, no desenho, no jornalismo e no ativismo político da primeira metade do século XX. Foi um ser humano profundo e contraditório. Transmitiu a sua inefável beleza a tudo o que tocava. Os esbirros de Hitler, os bufos e os colaboracionistas tinham razão ao destruir a sua casa. Era um símbolo de insuportável liberdade na Réanville da Ocupação.