“Eu estava perdidamente apaixonado pela Condessa de ***, tinha vinte anos e era ingénuo; ela enganou-me; eu zanguei-me; ela abandonou-me. Eu era ingénuo, senti saudades; tinha vinte anos, perdoou-me; e como eu tinha vinte anos e era tão ingénuo, sempre enganado mas não abandonado,
julguei-me o mais amado amante, e, por isso o mais feliz dos homens. Ela era amiga da senhora de T…, que parecia incluir-me nalguns projetos seus, desde que não lhe comprometessem a dignidade….”
Este é o começo inesquecível de Point de Lendemain, o livro de Vivant Denon, entre nós conhecido como Sem Amanhã.
Repare-se na forma como as ideias fundamentais são imediatamente enunciadas: a juventude do narrador, a sua inocência, que o leva a ter saudades da mulher que o engana, e a sentir-se feliz, apesar de se insinuar a continuação da traição.
E logo após esta declaração inaugural, surge uma referência, que não é à mulher amada, mas a uma amiga desta, a senhora de T…, que “parecia ter alguns projetos sobre a pessoa do autor”.
Tinha um grande projeto, a senhora T. Aparentemente ia ao encontro do marido para selar uma reconciliação longamente negociada. Mas a obra que encenava era arriscada e complexa. Envolvia três homens: o duque de ***, por quem se dizia ter amor inquebrantável e fidelidade reconhecida; o marido, que já fora interessante, mas que se encontrava fisicamente arruinado; o narrador, o jovem e ingénuo narrador que ela escolhe por “recear o tédio de um reencontro a sós” com o marido e que repreende quando ele ousa duvidar do seu papel .
Em trinta páginas, este último vai contar a aventura de uma noite em que a senhora de T., amiga da condessa de ***, o sequestra para a propriedade do marido, longe de Paris, onde ele viverá uma noite de prazer alucinado, entre dois ninhos de amor, pavilhões, santuários, gabinetes ou templos como são sucessivamente apelidados.
Dominique Vivant, barão de Denon, viveu entre 1747 e 1825 e dele são conhecidos três livros, entre os quais este, publicado em 1777 e 1780 e com uma nova versão em 1812 sempre com uma tiragem de “alguns poucos exemplares”, que a Assírio publicou em 2005 e as edições VS agora republicam numa edição cuidada, com tradução, apresentação e anexo de Aníbal Fernandes e design de João Bicker.
Diga-se que a apresentação está à altura do livro e do livro-objeto: é erudita, breve, surpreendente. Poucos esperariam encontrar, nos dias de hoje, um resumo tão certeiro do amor-libertino em oposição ao amor-paixão, com a dádiva de conter citações do Regard Froid de Roger Vailland.
Sem Amanhã, assim foi traduzido o livro, é o relato de uma noite em que uma mulher encantadora tece uma trama que se desenvolve em vários planos, assim desenvolvidos pelo narrador:
1. A senhora de T. interpela o narrador na Ópera, enquanto este espera a sua amada num camarote. Convida-o para abandonar a sala e entrar numa carruagem onde se lhe juntará.
2. A carruagem ruma a lugar longínquo. Há pelo menos duas mudas de cavalos. Quando o jovem questiona a sua presença num reencontro conjugal a senhora de T. repreende-o: “Ah! point de morale, je vous en conjure; vous manquez l’objet de votre emploi. Il faut m’amuser, me distraire, et non me prêcher.—”
3. A viagem decorre com aproximação física e verbal. Um choque imprevisto lança-a nos braços dele, de onde se liberta com brusquidão, mas ambos são atirados para trás, na carruagem.
4. Chegam à propriedade do marido da senhora de T. a quem o jovem é apresentado.
5. A presença do jovem é justificada e aceite como testemunha da reconciliação. O jantar decorre sem brilho, após o que o anfitrião, se declara cansado e se retira.
6. A senhora de T. e o narrador percorrem a propriedade enquanto anoitece. Ela apoia-se no braço deste e, pouco a pouco, o laço estreita-se.
7. A noite tece cumplicidades entre os dois. Afastam-se e aproximam-se. Trocam confidências. Ele tem vinte anos, lembremo-nos. Ela revela-lhe a verdadeira natureza da sua amada. Ele é, afinal, um entre três que a condessa de ***gere como marionetes, um entre três que uma “mulher hábil domina”.
8. Um pavilhão, numa clareira, tem as portas abertas. O casal entra e conhece-se com voracidade.
9. De regresso à casa, a senhora de T. revela a existência de um gabinete, igualmente dedicado à exaltação do amor e construído dentro dos muros.
10. Nesse recanto, o par renova o seu entusiasmo, desta feita com tempo a dobrar e redobrado ardor.
11. A manhã surpreende-os em trocas amorosas de acordo com o algoritmo do amor cortês. A senhora de T. suspira, suspende os suspiros e solta um último suspiro.
12. O jovem narrador senta-se no exterior da casa a pensar na noite, tão inesperada e plena de acontecimentos.
13. E é surpreendido pela chegada inesperada do marquês, o amante da senhora de T., que, face ao seu espanto, lhe revela o ardil urdido por ambos e como o jovem foi, nele, um figurante.
14. Mas, no elogio da senhora de T. a que o marquês, em seguida, se entrega, deixa escapar que a perfeição da senhora é embaciada pelo facto de esta não vibrar no amor, sem a exaltação que indicia o prazer.
15. O narrador regressa a casa, depois da senhora de T. , na despedida lhe ter habilmente feito perceber que a condessa de*** nada deve saber, desta noite de verão, que prejudique “a amizade entre as duas mulheres”.
*
2’. Vous manquez l’objet de votre emploi. Não percebeis para que fim vos utilizo. — diz a senhora de T. E ele escreve: — … Submeto-me. Obedeço. Começo a rir-me do meu personagem.
3’. A viagem constitui o segundo passo do projeto da senhora de T. Ela possibilita pequenos contatos, a janela do carro é estreita para que juntos apreciem os encantos da tarde, os solavancos da estrada ora os aproximam, ora os repelem.
5’. A descrição do jantar mostra que a senhora de T. comete erros sempre que se dirige ao marido. Gaba-lhe os aposentos pessoais, ignorando que ele os mandou demolir há cinco anos e oferece-lhe vitela, a ele , que “há três anos que está a leite”. A estas réplicas a senhora de T. exclama:
— Ah! Ah!
E o narrador desiste de dar pormenores do repasto e manda-nos “imaginar uma conversa entre três pessoas que se espantam por estar juntas.”
6’. “o braço entrelaçou-se sem eu saber como e o meu braço soerguia-a e quase a impedia de assentar no chão.”
7’. A descrição que a senhora de T. faz da condessa de ***é sublime. Ela escolhe o elogio superlativo das suas qualidades e para cada uma insinua um defeito grave: “— Na sua boca uma perfídia ganha ar de dito subtil; uma infidelidade parece um esforço de prudência.”
8’. “ — Era um Santuário, e era o do Amor”.— exclama o narrador.
10’: A descrição é muito cautelosa. São fornecidos alguns pormenores físicos da senhora de T. Mas o mais interessante é a marcação dos tempos ou andamentos. “Tinha havido em tudo um pouco de precipitação. Retomámos com mais pormenor o que nos tinha fugido”. Milan Kundera utiliza este romance no seu livro A Lentidão, de 1995, considerado uma das suas obras menores, ou, com maldade, “o início da fase francesa”. Seja como for, o livro de Kundera recuperou a ideia de lentidão associada ao amor-libertino do século XVIII.
11’. Ele não esperava ouvir o seu melhor grito. Ela não esperava soltá-lo.
*
Desnon tinha trinta anos em 1777, data em que este conto foi publicado por um tal Claude-Joseph Dorat. Não sabemos se Desnon o escreveu, se plagiou, se viveu e foi protagonista destes deliciosos acontecimentos ou se os ouviu contar. Poucos tiveram a sorte de conhecer este texto até Balzac o reescrever. Mas em 1958, Louis Malle realiza Os Amantes, atualizando o encontro com madame de T., agora a mulher de um burguês de Dijon. Como sucederá com Kundera, a maior virtude destas incursões foi renovar o interesse por Sem Amanhã.
Ninguém como os fidalgos franceses do século XVIII e as suas amantes foi capaz de inventar e interpretar o amor libertino. Uma plêiade de gente ocupada no uso espirituoso da linguagem, na réplica elegante, no subentendido e no duplo sentido. Mulheres e homens demoradamente vestidos e calçados por valetes, de cabeleiras ondulantes, maquilhados com rigor, cujo dia se passava entre palacetes e camarotes, salões literários e academias, concertos e passeios, casas de jogo e clubes. Uma legião de maridos enfadonhos e de alcoviteiras, de barões enriquecidos e ambiciosos, de mulheres dissimuladas. E entre eles, brilhando com esplendor, as libertinas como a senhora de T. e a condessa ***, a inesquecível senhora de Merteuil das Ligações Perigosas, a senhora Du Barry, a senhora de Beaufort, a menina d’Estat, a menina de Dutilleul, as atrizes Sophie Arnould e Julie Duteille, Victoire Dervieux e, porque não, Marie-Antoinette. Nas palavras de um historiador estas mulheres eram cultas, determinadas, ativas, livres e envolvidas em causas. Elas escolhiam os homens que as podiam cortejar, como e quando. Escolhiam-nos pelo brilho oratório, pela coragem física, pelo risco que mostravam poder correr, pela elegância dos trajes e da figura, pela dedicação cortês. Embora usassem as figuras e os símbolos do amor-paixão e parecessem atuar conforme a moral vigente, a sua vida era um artifício e uma encenação. Praticavam a sedução como uma obra de arte.
15’. No fim de Sem Amanhã, o jovem narrador parte sozinho e reflete sobre qual a moral da aventura que contou. E escreve:
“…não lhe encontrei nenhuma”.
Sem Amanhã
Vivant Denon
Edições VS
2023