En la pasión, el recuerdo se inclina a lo intemporal. Congregamos las dichas de un pasado en una sola imagen; los ponientes diversamente rojos que miro cada tarde, serán en el recuerdo un solo poniente. Con la previsión pasa igual: las más incompatibles esperanzas pueden convivir sin estorbo. Dicho sea con otras palabras: el estilo del deseo es la eternidad.1
Regresso por um caminho diferente, supreendido por uma súbita mudança de condições. A expectativa era de banquete, excesso e fogo de artifício. Ir buscar à floresta os mitos do Verão. Abandonar o corpo na multidão e fazer parte de um grande monstro esfomeado, devorador de luz e de pó. Sentir-me acompanhado pela solidão dos outros e fazer da minha uma insígnia, para que todos vejam, no alto-relevo do meu rosto, a beleza triste da solitude. Para lá, íamos todos no carro: as botas, o agasalho, a questão da habitação, a próxima segunda-feira, a ansiedade crónica e ela, sempre do meu lado, para que não me faltasse o deserto.
O fogo não abriu. As más condições atmosféricas não o permitiram. Todo o entusiasmo fechou-se no toldado da chuva. Então operou-se uma espécie de revolução no abrigo do automóvel. A tempestade transformou-se num conforto. Finjo querer que ela pare. Finjo até que estou um pouco assustado, mas ela não sabe o quanto me acalma. Naquele momento o mundo está focado em sair ileso. Todos se refugiam. Todos esperam. Abate-se uma espécie de silêncio entre as rajadas e um tipo de escuridão tranquila entre os relâmpagos. A chuva, em toda a sua espessura, uniformiza a sonoridade do mundo, que passa a existir imerso no embate da água no chão e na chapa. Nessa troada fulgurante, rejuvenesce o optimismo. Amanhã leremos sobre o quanto esta calamidade afectou as colheitas e a forma como estes fenómenos serão cada vez mais comuns neste século mas, naquele momento, só me interessava que ela, a tempestade, durasse para sempre. Que o oceano onde submergimos continuasse a afundar connosco até ao nível dos animais nunca antes vistos e que a grande bolsa líquida me recebesse de volta à barriga da mãe, para que pudesse, então, encarnar eu mesmo, esse bicho a que os submarinos apontam os holofotes, perdido nas profundezas, à espera de ser encontrado.
O clarão de um dos grandes disparos ilumina-a. Nessa fracção de segundo reconheço-lhe o inóspito nos olhos. Teriam de escavar para sempre para chegarem ao fim daquele olhar. O temporal desce nela como num poço, como se absorvesse os desgostos de todas as mulheres do mundo. Tento tocar-lhe para saber se existe. (Para saber se existo.) É sempre assim, o desejo. Começo por encarar a ruína e prossigo no rasto fresco de um felídeo pardo, do tamanho do Passado, portento, traiçoeiro. A chuva não pára. O carro aumenta de tamanho à medida que o corpo se adapta aos ressaltos do seu interior. Aos poucos, o cotovelo encaixa no manípulo da porta. As pernas descobrem a dimensão real da cabine quando as costas resvalam para o fundo do banco. Somos crianças a perverter a máquina que não foi desenhada para este abismo.
A tempestade parou. Voltamos à superfície das nossas vidas cientes de que tudo não passou de um derrame de loucura e, com a adrenalina ainda a traficar na pele, partimos para o poente de um país de céu limpo. Já em frente ao mar, na praia da minha infância, tento perceber o livro que leio. Há qualquer coisa de incontornável na metáfora da rebentação. Mas há também uma outra evidência que perpetuou aquela madrugada com o cheiro da areia molhada, o sal e os pássaros a cruzarem já o côncavo das dunas: a certeza de já ter sido apenas eu e ela, a solidão, a tempestade, em frente ao mar. Se calhar, porque as ondas embalam, porque limpam, porque sempre regressam, sejam a grande imagem do tempo circular, e nós, sentados naquele degrau de madeira, coincidentes no espaço, dois simulacros de amor, nós, que provámos da eternidade apenas o travo da sede, fomos a espuma que explodiu no limite do real.
A noite que prometia artifício, debaixo do cerrado das árvores, fechou-se, tranquilamente, no aberto do céu. Fui errante, criança e amante. Vi no dilúvio matéria de maternidade. Somos feitos de água, dizes-me tu, pequena lágrima. Tudo aponta para um ventre aberto sobre a terra. Na praia entendi que o eterno é a forma do desejo, e não há nada mais tentador que um horizonte vincado a dois tons de preto. Tudo parece reiniciar uma lembrança repetida até ao último fôlego. Ao último fôlego. O sol nasce nas nossas costas e precipitamo-nos na cama, ansiosos por adiar a morte.
1 Jorge Luis Borges, História de la Eternidad.