Já a observava há umas semanas, quando ia passear o pinscher ao pequeno jardim em frente da cervejaria. Era uma normie gira, esbelta, fresca e jovial. Vestia roupa de marca, sempre moderna mas discreta, um ar que os grandes óculos de massa castanhos realçavam. Um dia, resolveu avançar. Sentou-se num dos bancos do jardim a fazer origâmi pouco antes da hora a que ela costumava lá passar com o cão minúsculo. Não foi preciso esperar muito até que a sua figura curvilínea se começou a desenhar no horizonte, o andar decidido, o ar compenetrado a contrastar com a fúria permanente do animal de estimação.
A poucos metros do banco de jardim, o cão parou para fazer as necessidades. Ela esperou, enquanto olhava em volta, sem que os seus olhos se detivessem em nada nem em ninguém. Quando o cão terminou, ela baixou-se fletindo os joelhos e, recorrendo a um pequeno saco de plástico, apanhou os dejetos do pinscher. Era aquele o momento, pensou ele. Quando ela se levantou e dirigiu ao recipiente apropriado para o efeito ali instalado pela autarquia local, ele disparou: “morde?” Ela, imperturbável, respondeu que não, ao que ele, arvorando o seu ar mais blasé, retorquiu: “e o cão?”. Ela soltou uma risadinha envergonhada e, a partir daí, foi tudo muito rápido, como num filme pornográfico.
Passaram a ver-se todos os dias, a partilhar muitas das noites juntos no apartamento que os pais dela lhe tinham alugado para os anos de faculdade, onde ela estudava parapsicologia, ramo de regressão quântica, a passar fins de semana juntos. Ele arranjou maneira de o pinscher ser atropelado e, com ela só para si, consolou-a no seu sofrimento. Ela exibiu-o e à sua dedicação às colegas, que não disfarçavam o quanto o charme de um homem mais velho com jeitão de adolescente as derretia. O caráter extrovertido dele conjugava-se com o registo meticuloso dela como alfafa em solo moderadamente alcalino. Eram o par dos romances de cordel, viviam a todo o tempo o sonho de uma paixão estival. Mas algo ensombrava a relação: ela estava quase a terminar o curso e pretendia fazer uma especialização de dois anos em visão remota que só existia numa universidade da capital — e ele não estava disposto a mudar-se para lá.
Desde que o pai falecera, uns anos antes, num trágico acidente com uma máquina de costura, que ele era a única companhia da mãe, habitante de um pranto sem fim, e tinha prometido a si próprio que jamais a deixaria. A normie não via nenhuma incompatibilidade: ele não estava sempre com a mãe, ausentava-se para férias e para realizar pequenos furtos, como os que lhe tinham providenciado os fundos para o cruzeiro que ambos haviam feito no Mar Jónico para celebrar o amor que os unia. Além do mais, a capital não era assim tão longe, estava a duas horas de comboio, duas e meia de autocarro. Se fazia tanta questão de não se mudar, poderiam visitar-se ao fim de semana. Mas a ideia de a deixar à solta na capital durante os dias de semana não era para ele aceitável. Entendia que ela podia perfeitamente seguir um percurso profissional que não a obrigasse a ausentar-se, seguindo uma das especializações disponíveis na universidade que já frequentava, como glossolalia ou radiestesia. Ela explicou-lhe que isso não era possível. Vinha, como ele bem sabia, de uma família pobre e iletrada que passava dificuldades para que ela pudesse estudar na cidade com todas as mordomias dos colegas mais ricos e o mínimo que podia fazer era tirar uma especialização de prestígio, que lhe garantisse rendimentos futuros e um reconhecimento público à altura das expectativas dos pais. Além do mais, ele não tinha nenhuma obrigação profissional que o forçasse a um determinado local, na capital até havia mais oportunidades para a pequena criminalidade que naquela cidade de província onde, por um acaso do destino, se tinham cruzado.
Ele ficou magoado. Não podia conceber que aquela imensa paixão fosse posta em segundo plano por ambições tão mesquinhas, que a comunhão improvável de dois espíritos siameses fosse subjugada a interesses materiais. Mas ela não se demoveu e ele, ferido, decidiu terminar a relação. Para ele, foi uma dor difícil de suportar, como se os músculos se tivessem desprendido do esqueleto, que se recusou a partilhar com a mãe ou os amigos, preferindo fingir a indiferença do fatalismo. Mas, não sentindo o sofrimento a desvanecer, assolado por pesadelos e incapaz da alegria descomprometida que sempre o caracterizara, decidiu que tinha de partir, de recalibrar a cabeça numa paisagem não contaminada pelas memórias e imagens da sua querida normie. E foi assim que, num repente, se meteu num avião e foi passar dois anos à grande cidade subtropical, onde por certo haveria muitas mulheres quentes, especializadas no esquecimento, e o mercado dos catalisadores de automóveis furtados apresentava carências do lado da oferta. De lá, enviaria à mãe um postal com palmeiras todas as semanas.