Número 26

29 de Outubro de 2022

O DESPLANTE

Notas de nevoeiro

FREDERICO MARTINHO

Escrevo numa manhã soturna sobre uma coisa que ainda não foi corrompida pelo esplendor límpido da sociedade de consumo: o nevoeiro. Abro as portadas da janela do quarto e deparo-me com a massa cinzenta — prateada quando algum raio de sol acerta em cheio numa gotícula mais robusta — que encheu o ar de um opaco húmido e pesado, colmatando o aparente vazio do ar com uma argamassa intransponível que inverte a concordância entre o que era sólido e o que ficava aberto para a circulação dos ventos, dos fumos e dos olhares.

Há, concerteza, várias explicações cabais para este fenómeno, assim como as há para os eclipses, para as auroras e para as crises financeiras, mas o que me interessa aqui não é o porquê deste suor correr no dorso desta cidade. Interessa-me, isso sim, conduzir esta nota pela transpiração quase ofegante com que se me apresenta esta manhã, oferecer a minha língua ao hálito negro deste bloco de prata e descobrir se é de sal que escorre o humor matutino desta rua, ou se é doce a água que se eleva à frente dos meus olhos. Entrego a minha atenção a este monstro que humedece as guardas de ferro e as folhas das árvores com o cuidado de uma mãe e, ainda assim, estende nas ruas um halo ácido que corrói os mesmos ferros e apodrece as mesmas folhas. Foco-me no silêncio sugerido por esta neblina que rasteja junto a nós e parece dotada da mesma gravidade das pedras, que cala as ruas e cerra o céu para nos encerrar num beco fosco, uma solene armadilha para os olhos. Experimento, nesta manhã, a hipótese de encontrar na atmosfera um segredo, e nesse segredo a revelação de uma mentira: a de que o nevoeiro nos tolda a visão. O nevoeiro existe como existem todos os objectos. Conseguimos senti-lo na pele apesar de estarmos sempre a um palmo de o alcançar. O que nos tolda a visão é a ânsia de ver para além dele. As pálpebras sim, quando descem, cegam. Então, a visão é um exercício de montar tudo o que acontece entre cada pestanejar. (Cinema.) Quanto ao nevoeiro, quando sobe, inunda. Nadamos nele. Não estamos cegos, mas ébrios de visibilidade, porque se o nevoeiro esconde, esconde-o com o próprio corpo. (Fotografia.) Dou por mim à janela a montar fragmentos de um cenário repleto de encobrimentos e descobrimentos, intuindo a liquidez da imagem na estrutura impenetrável de um vapor. Algo acontece nos intervalos do meu olhar. Nessa descontinuidade a névoa aparece com novos feitios. Observo o nevoeiro e anoto como ele ora apaga, ora recorta. Recorta enquanto apaga, fazendo da água a limpeza que lava o embrulho do mundo. Não é de revelações e omissões que se faz o trabalho do olhar? Ao mesmo tempo que cobre e recobre o mais empedernido dos edifícios, desenha também em suspensão a mais delicada silhueta de uma forma entre formas:

A cidade caía /casa a casa /do céu sobre sobre as colinas, / construída de cima para baixo / por chuvas e neblinas, / encontrava / a outra cidade que subia /do chão com o luar / das janelas acesas / e no ar / o choque as destruía / silenciosamente, / de modo que se via / apenas a cidade inexistente.[1]

O nevoeiro sobe da terra e das sarjetas carregado de uma informação tão densa que retém a luz na sua carne húmida. O que acontece é que hoje o confronto entre os nossos olhos e esse corpo é estéril – nem os olhos entendem, nem o nevoeiro ilumina. Já não existe o nevoeiro tal como ele era para os românticos quando o desenhavam como um mistério contemplativo, uma ruína que escondia em si, entre as heras, as respostas para um amanhã épico. Olhavam o nevoeiro de cima, sedentos de Futuro. Agora, que não suportamos uma ruína e o seu papel ocioso na cidade, o nevoeiro ainda fará parte de uma trança de mistério. Contudo, da transpiração de que falo emana sobretudo uma desconfiança, um momento de terror de onde sairá um vulto para o golpe final. A visão foi tomada pelo medo e não pelo desejo. Atravessamo-lo de soslaio. Toleramos o seu tamanho nas nossas madrugadas como quem tolera a maré que devora a costa. A falta de poder sobre ele nada tem a ver com a sua natureza e a óbvia impossibilidade de o rasgarmos com a mais fina das lâminas, mas sim com o facto de nos acobardarmos perante as suas interrogações e excessos. O mistério é só para os corajosos, e este fenómeno ganhou traços obscuros. Voltemos ao nevoeiro como os escritores das brumas porque nada é mais límpido que um vestígio: quem nunca sonhou com uma duna perdida numa maresia fechada. Despimos as nossas vidas das coisas que nos abalam e o nevoeiro é das poucas sombras que nos restam.

O manto retira-se com o fim da manhã, deixando a sua saliva na ponta dos objectos, prometendo voltar durante o próximo sono. Resta-me anotar, ao mesmo tempo que o sol volta a abrir o horizonte, que o regresso do nevoeiro será sempre a salvaguarda da utopia e de outras cidades inexistentes.


[1] Carlos de Oliveira, Nevoeiro, 1968.