I. Começou tudo com dois pontos: aquele onde me encontro e outro, imaginário, em que pudesse provar que planeta não é mundo, e que o mundo é o que realmente me interessa.
II. Desses dois pontos estabeleceu-se uma linha. Svalbard é a linha, não o ponto ― a ponte.
III. Confirmei-o, agora mesmo, ao aterrar nesta ilha de água e pedra: os próximos dias serão uma linha entre mim e o que de esmagador me alimenta e tortura.
IV. Cheguei ao limite.
V. O segundo ponto é invisível. Esta ilha é o que me permite ver a sua entrada, mas não o contorno. Esta ilha é o meu Monte Análogo.
VI. A porta do invisível deve ser visível, escreve Daumal, sobre uma montanha cujo cume é inacessível e talvez não exista.
VII. K. espera-me em Longyearbyen. Não a vejo desde há exactamente quatro anos, na Grécia.
VIII. O frio, lá, era de outra natureza. Assinalamos o facto de nos encontrarmos apenas nos limites da civilização.
IX. K. entusiasma-se com a baía gelada. Eu, acabado de chegar, ainda receio tudo. Ela diz que é seguro, que o gelo tem vinte centímetros de espessura. Eu ouço-o a estalar debaixo dos pés como se o mar estivesse a acordar. Digo a K. para sair dali e ela ri-se. Eu, com os pés na neve terrena, lembro-me de quando não tinha medo de camadas finas. Olho para ela no mar, a brincar comigo, e lembro-me porque vim. Vim para me esquecer que tenho medo.
X. Ao fundo, as montanhas brilham como pérolas.
XI. O ar, ou seja, tudo o que acontece entre as montanhas, os edifícios, as renas, tudo o que a nossa percepção exclui entre objectos, cintila de pequenas luzes, pedaços de frio.
XII. O ar existe e nós nadamos nessa massa brilhante. Vemos e tocamos o ar. Liga-se tudo através dele. Estou aqui, na estrada, e sinto a encosta, a dois quilómetros, encostar-se-me na cara.
XIII. Ao mesmo tempo, a sua grandeza impele-me para trás. Caminho de costas.
XIV. Fotografar uma paisagem exige afastarmo-nos dela. É preciso sair da cidade para a vermos. Subir o vale para lhe entendermos as entranhas. Aumentar o espaço entre nós e o referente. É isso, compreender.
XV. A distância desacelera. Congela. Consente.
XVI. O frio rasga e preenche.
XVII. O fim do mundo é sempre apenas o lado oposto ao nosso. O fim é o avesso. O fim é impossível, não existe.
XVIII. O frio e o fim sobrepõem-se ― inventam espaço.
XIX. P. pergunta-me o que estou a pensar. Respondo-lhe que penso numa coisa triste. P. insiste: tell me something sad, then.
XX. Hoje, saio em expedição. O grupo contabiliza as espingardas, os transceptores de avalanche, os mantimentos, os nomes de cada um. Somos onze pares de olhos que nos identificam para lá dos fatos de neve.
XXI. M. conduz-me por cento e cinquenta quilómetros de vales, planícies brancas e glaciares. Muito em breve não saberei qual o tom dos seus olhos cristalinos ou qualquer traço do seu rosto. Não saberei a sua idade ou sequer onde nasceu, mas saberei o seu nome. Saberei que me guiou no lugar mais inóspito da minha vida.
XXII. Há todo o equipamento contra o frio, a balaclava, o gorro, a gola que cobre os lábios. Há o capacete e o ruído constante da mota de neve. Há ainda a língua e o sotaque. O facto de eu falar nas suas costas e ouvir da sua nuca. Mas quando caiu uma estrela em pleno dia percebemos imediatamente a mesma beleza.
XXIII. É tudo belo e difícil.
XXIV. É tudo uma conquista.
XXV. Encontramos pegadas frescas de urso. O trilho desaparece na linha distante da planície. O animal existe e passou por aqui. A sensação de estar perante o seu rasto é a de que ele nos vê.
XXVI. Não há homens no Ártico. Estou rodeado de mulheres, montanhas, diferentes tipos de cristais, lagópodes-brancas e outros mistérios.
XXVII. Nunca tinha sentido o veneno do frio. Começamos por não sentir as mãos e os pés, depois vem a dor e o medo de não voltarmos a sentir como dantes.
XXVIII. Estão -26º lá fora. 37º cá dentro. Há um abismo entre mim e o mundo.
XXIX. K., S. e eu, passamos a noite numa cabine, no sopé de uma montanha branca e escarpada. Jantamos e decidimos sair por uns minutos. Encaramos, em silêncio, a linha de luz de um Sol que já não se põe, recortando a cordilheira do outro lado da baía.
XXX. S. é finlandesa. O seu nome significa conto de fadas.
XXXI. S. é glacióloga. Explica-me porque ainda há um único glaciar que cresce. Alimenta-se da humidade que evapora dos outros e que o vento transporta. Faz-se do desaparecimento dos outros.
XXXII. Enquanto contemplo o trajecto horizonal do Sol, que desliza hesitante atrás dos fiordes, C. escreve-me um texto de despedida que só lerei amanhã.
XXXIII. Amanhã, este dia será ainda mais importante. Agora, ainda ignoro o que lhe pesa, mas está tudo à minha frente: a réstia de lume nas cores ao longe, a amplitude, a latência.
XXXIV. Espero a noite que não vem, sem saber que é a noite que espera por mim.
XXXV. Uma contemplação que se desenrola sem angústia, não é contemplação, escreveu Quignard, e eu devoro o ocaso como se adivinhasse que morrerei aqui, caiado de luz.
XXXVI. Duas raposas brancas correm em círculos na contraluz de uma meia-noite prateada.
XXXVII. Ouço o bater do meu coração nos intervalos da minha respiração. A brancura da neve destrói a sombra nocturna. Sou rodeado por uma nitidez de metal. Envolvo-me numa noite de mercúrio. As raposas desaparecem.
XXXVIII. Já no conforto do fogo, encontro esta frase escrita no livro de depoimentos da cabine, alguns dias antes: 5th March, arctic foxes help heal a broken heart. Remember, this is all past you dreamt of.
XXXIX. Caímos de sono e o céu ainda se faz de várias cores.
XL. Não me lembro de um dia tão comprido, de um agora tão extenso ― um Agora face a face com o seu Outrora (Quignard) ― de uma atenção tão fácil, tão incontornável.
XLI. Adormeço a pensar que até este gigante de gelo derrete pela força bruta do Homem.
XLII. Também ela, a ilha, jorrará até secar.
XLIII. Restará a pedra. Cantar-se-á a pedra.
XLIV. Olho a ilha de cima. Saio do quadro que o frio pintou. Pergunto-me o que acontecerá a estas montanhas brancas, ao mito do fim-do-mundo, ao urso que vagueia como um fantasma no deserto. Que acontecerá a esta luz que me entra nos olhos. Terei que inventar outros himalaias, outros inalcances.
XLV. Abandono Svalbard ― anoto a noite.