Há um conjunto de imagens no arquivo de Slavick que correspondem a fragmentos de placas fotográficas que se foram partindo, por acidente, por descuido, por azares e acasos diversos que acometem este tipo de suportes fotográficos. Já de si frágeis, o material não ajuda. Se para a quase totalidade dos fotógrafos o momento da descoberta de um negativo quebrado, se importante, é vivido sempre como uma perda, para Skavick parece ser sempre uma oportunidade. Como se o acaso fosse o determinante para o enquadramento final, para a imagem que resta, sempre fugindo ao rectângulo habitual que determina a maioria, se não a totalidade das imagens fotográficas.
Normalmente a imagem fotográfica é vista como resultado de uma transparência em relação ao fotografado, à semelhança do que Leonardo da Vinci dizia da perspectiva: ver a cena por detrás de um plano de vidro em cuja superfície os objetos se vêm desenhar. A fotografia veio ampliar este efeito tendo em conta o modo como a imagem é construída na câmara escura. E pensando nas primeiras câmaras fotográficas, a metáfora é mais que certa já que a imagem, antes da inserção do negativo, se via projetada num vidro despolido, seguindo rigorosamente as regras da perspectiva tal como definidas à época. Este lado de uma visão natural, de uma janela a partir da qual se observa o mundo (que, convenhamos, já vinha da pintura) a par de todas as características técnicas próprias do dispositivo, é uma das bases em que assenta a ideia do realismo e da verdade da fotografia.
A janela é uma abertura para o mundo e a imagem é essa janela. Contudo, a representação é sempre uma ficção, independentemente do grau em que convoca a realidade. Estas preocupações, podemos chamar-lhe, estão presentes em Slavick. Nos seus cadernos, reflete frequentemente sobre estas questões. Se desde cedo é uma ideia que se atravessa muitas vezes no seu pensamento, à volta de 1907 torna-se numa preocupação explícita nos seus cadernos (1)(2).
No caso da imagem que ilustra a nota desta semana, estamos perante uma fotografia que fala dela própria e, ao falar dela, fala-nos sobre todas as fotografias. Nasce de um acidente que ele relata nos seus cadernos. Estava a separar os negativos em suporte de vidro que tinha realizado numa das suas estadias em Madrid (3) e que, por diversas razões, não estavam em condições (a maioria tinha problemas ou ao nível da emulsão ou processamento ou ainda na tomada de vista) e acidentalmente a caixa escorregou da mesa e caiu no chão. Ao ver as placas de vidro estaladas, apanhou os pedaços e um pouco por acaso olhou para os fragmentos e começou a tentar reconstruir o original e, nalguns casos, misturou pedaços de diferentes negativos. Daí até fazer uma prova de contacto com o resultado, foi quase imediato. A fragmentação do negativo rompe a ilusão de transparência em relação ao mundo. Ao fazer-nos regressar à superfície de representação, traz-nos de volta a fisicalidade da imagem fotográfica e a sua fragilidade. A deia de transparência total em relação à realidade desaparece e o que fica é a superfície de representação, a lembrar-nos que o que vemos não é a realidade mas a sua representação. Numa pintura, a presença dos materiais impõe-se e concorre para a recepção e interpretação da imagem. Na fotografia, tudo isso tende a desaparecer em benefício da representação.
É uma ideia que virá a ter um equivalente na pintura, como por exemplo nos mostra Magritte em La condition humaine de 1933 ou ainda em La Clef des champs de 1936. Os estilhaços do vidro fragmentam a paisagem que a ele se colou, revelando a paisagem verdadeira por detrás. Mas tudo é ilusão, porque tudo é pintura. O que está por detrás de uma fotografia?
Mas ao contrário de uma janela quebrada que nos deixa ver para além, ficamos com uma superfície negra que nos interpela, como um ponto cego, lugar da ausência de luz como se a fotografia fosse um buraco negro, numa caixa negra, que consome o visível (4).
1 Je regarde cette photographie et j’ai l’impression de voir la réalité, mais quand je prends le négatif et le prépare pour l’impression, je comprends que tout cela n’est qu’une illusion. SLA/LS/MISC/N12-I-033
2 Não podemos deixar de notar alguma coincidência temporal entre estas reflexões e as preocupações sobre a representação que ocupavam Picasso à época.
3 Neste caso uma escultura na Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, onde tinha estado sobretudo para admirar a limpeza dos elementos barrocos pelo arquiteto Diego de Villanueva (1715-1774) que atualizou o edifício a uma linguagem neoclássica muito mais ao gosto de Slavick
4 A mesma leitura viremos a encontrar muito mais tarde quando nos anos sessenta do século passado Kertész retoma o contacto com a sua obra que tinha ficado em França em 36 quando aceitou ir para os Estados Unidos no que julgava ser uma situação temporária. A grande maioria dos negativos de vidro estavam partidos e, de entre todos, Kertész salva um deles que imprimiu cuidadosamente juntando os fragmentos de vidro. Trata-se de Broken plate que se tornará numa das metáforas mais poderosas de toda a fotografia, sobre a representação e o próprio dispositivo fotográfico.