Número 11

21 de Agosto de 2021

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO
SLA/LS/VIS/ V-1906-010


Não é fácil traçar a genealogia deste trabalho mas estamos em crer que conseguimos encontrar grande parte dos dados que nos permitem entender, pelo menos, algumas das motivações que lhe estão subjacentes.

Um dos pontos de partida, se não o principal, foi a epistolografia trocada com Augusto Bobone (1825-1910) o fotógrafo português, herdeiro do Atelier Fillon e dono da Salão Bobone ao Chiado, face ao Museu de Arte Contemporânea e que continuou muito para além da sua morte como espaço de divulgação da arte moderna e onde Slavick terá relutantemente mostrado, ocasionalmente, o seu trabalho. A aproximação entre os dois poderá dever-se a Carlos de Bragança (1) que lhe terá falado deste seu fotógrafo (Bobone era fotógrafo oficial da Casa Real). Fala-lhe do seu trabalho, sobretudo da coleção de foto-radiografias que realizou em 1896 e que causaram alguma sensação à época. Slavick já tinha ouvido falar dele, sobretudo em Paris onde tinha ganho uma medalha de ouro na exposição Universal de 1900. Terá sido Bobone, sabendo do interesse dele por diversas áreas da ciência, que lhe fala das fotografias que tinha feito em Coimbra havia alguns anos. Rapidamente organiza uma viagem a Coimbra com Slavick, para este poder admirar e registar o que restava das coleções iniciadas por Domenico Vandelli (1735-1816), o famoso naturalista italiano, durante a sua estadia em Portugal. Contudo, não era o lado do naturalista que mais lhe interessava mas sim o de Teratologista. (2) Sabia que ele tinha reunido uma coleção de monstros e conhecia bem a sua Dissertatio de monstris publicada em 1776. É atrás destes exemplares que ele vai e acaba por recolher uma série de fotografias mas cuja identificação e atribuição precisa resta por apurar. Mais certa é esta imagem que faz parte de um conjunto criado em torno de alguns exemplares em exposição nos museus da universidade. (3) Fazem parte de um conjunto vasto e heterogéneo reunido sob a designação de Le Cabinet de M. V., numa alusão direta a Vandelli, apesar de terem pouca, ou nenhuma, ligação direta a esta figura singular que marcou uma mudança significativa no nosso modo de entender as ciências naturais.

Tal como Bobone, Slavick tinha tido instrução artística o que lhe permitia aliar a plasticidade do desenho e da pintura à natureza mais descritiva e realista da fotografia.(4) Para além de usar diferentes técnicas de impressão caras aos pictoralistas da época, era frequente intervencionar diretamente as fotografias com lápis de carvão ou grafite e tintas criando imagens ambíguas quanto à sua origem, o que aliás já tem sido confirmado em trabalhos anteriormente mostrados. Esta imagem, tal como o resto do conjunto, não escapa a essa técnica levando o reconhecimento da imagem fotográfica a limites que, frequentemente, anulam o carácter meramente fotográfico destas imagens e constroem um universo plástico mais de acordo com as convenções pictóricas das vanguardas da época que da fotografia. Aliás, Slavick raramente se deixou encantar pela fotografia meramente documental se bem que tenha, no seu espólio, exemplos que estão ao nível da produção do género no seu tempo. Na sequência da nota anterior, em que se falou do valor enquanto objeto e da fisicalidade da imagem fotográfica, interessavam-lhe outras questões que ultrapassavam a questão do realismo, como é o caso da ideia que desenvolveu em torno da fotografia enquanto objeto folheado, construído em camadas onde a luz e o tempo se vão depositando, à semelhança dos fósseis que admirava nas coleções de história natural. Mas quanto a este assunto, outras notas se dedicarão.

(1) Sobre esta relação que se manteve sempre muito discreta, haveremos de falar noutras ocasiões. Mas ter-se-á iniciado através de um encontro promovido por amigos comuns, com interesses na oceanografia, que gravitavam o círculo de Alberto I do Mónaco, por ocasião da mostra de alguns espécimes marinhos da sua coleção, em 1897, no museu de história natural de Londres. 

(2) Do lado naturalista de Vandelli, sabe-se que o que o fascinava mais eram as Viagens Philosophicas de que foi mentor, em especial a do seu aluno Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazónia, que teve o seu início em 1783 e terminou 9 anos mais tarde e igualmente as realizadas a terras de África. Uma outra, no interior do Brasil, a de Langsdorff em 1825 interessava-lhe igualmente e sobre ela tinha recolhido muita informação. Sobretudo por causa da presença na expedição de Hercule Florence que se viria a tornar numa personagem algo misteriosa no que diz respeito ao início da fotografia no Brasil.

(3) Uma seleção destas imagens, onde se inclui a que ilustra esta nota, foi apresentada em Coimbra em 2016, com o título genérico de Le Cabinet de M. V., integrada na exposição O Avesso da Cidade. Parte deste texto é editado a partir da folha de sala distribuída na exposição.

(4) Este interesse pelas artes vinha de longe através de ligações familiares ao mundo das artes. Curiosamente um bisavô seu tinha sido colega de Domenico Pellegrini (1759-1840) na academia em Veneza. Daí tinham ido para Paris onde a Revolução os encontra e mais tarde seguem caminhos separados. Pellegrini acaba em Portugal onde pinta em 1895 a sua obra-prima, um retrato de Mme Junot e da sua filha Josephine (hoje no Museu de Bordeús) pintado no recente e moderno estilo inglês que aí tinha aprendido durante a sua estadia do outro lado da Mancha. Em 1810 é deportado com Vandelli para Angra na sequência do final das invasões francesas, acusado de ser afrancesado. Ironicamente, a fragata que os transporta é a Amazona.