Em maio de 1908, Lazar Slavick está em Madrid para assistir a alguns dos eventos das celebrações organizadas pela Comisión organizadora del Centenario del 2 de Mayo de 1908. O seu interesse centrava-se sobretudo nas iniciativas realizadas em torno da figura de Francisco José de Goya y Lucientes (1746–1828) cuja obra admirava e apreciava, em quase todas as visitas frequentes que fazia à cidade. Durante anos manteve um pequeno gabinete na Biblioteca Nacional de España, era visita frequente dos arquivos da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando e do museu e reservas do Prado (onde passava mais tempo que nas salas de exposição). Mais que a pintura de Goya, era a produção de gravura que mais o atraía (1) em especial a série Los desastres de la guerra, um conjunto de 82 gravuras realizadas entre 1810 e 1815 que retratam o horror da guerra tendo por base a guerra da independência, ou guerra peninsular, que ocorreu entre 1808 e 1814 (2).
Conhecido o seu interesse pela botânica, um dos seus espaços de eleição era o Real Jardín Botánico de Madrid onde, para além da observação das espécies botânicas, costumava fotografar com regularidade. A imagem que ilustra esta nota pertence a uma série fotográfica realizada nesse ano de 1908, no jardim, em Madrid. Enquanto a maioria da série corresponde a mera documentação de material vegetal, três das fotografias são de alguma da estatuária que povoa o espaço. De toda a série, esta é a mais enigmática, pois corresponde a um busto de uma figura não identificada e que se encontra num estado avançado de degradação, provavelmente fruto do vandalismo ocorrido cem anos antes durante a guerra (3).
Regressando a Goya e às gravuras da série dos desastres, Slavick tinha podido observar as chapas de cobre, matrizes originais que tinham sido gravadas por Goya. Teve uma oportunidade única de ver algumas das chapas ainda com tinta, durante o processo de edição posterior das gravuras, ver a tintagem e impressão. Dizia que muitas vezes apreciava mais a chapa com a tinta, antes da tiragem que a gravura final (4). Dizia que encontrava muitas afinidades entre a gravura e a tiragem fotográfica, sobretudo no que dizia respeito, obviamente, à técnica da impressão por fotogravura. Foi a pensar nisso que Slavick tratou esta fotografia para impressão em fotogravura, uma impressão direta de um negativo, adensado pela tinta, uma imagem onde a atmosfera obscurece o detalhe e a clareza do processo fotográfico. Para ele a escolha do tema era imediata. O rosto que se desfaz, que apaga a identidade e que permanece como um registo documental da erosão, quer natural quer a destruição provocada pelas acções conscientes da humanidade. Era a sua possível e discreta homenagem a Goya. Apenas existe este exemplar, que apresenta uma mancha de contaminação química, ligeiramente avermelhada, no canto inferior direito e muitas imperfeições de superfície por maus tratos à prova e algumas que foram infligidas ao próprio negativo e que, estamos em crer, terão sido provocadas para acentuar uma certa dimensão da fragilidade e imperfeição do mundo. Como Slavick dizia, a fotografia consome a realidade (5).
- Apesar das reflexões entusiasmadas sobre pintura que surgem nos seus cadernos da primeira vez que esteve na presença dos Fusiliamentos del três de mayo que Goya pintou em 1814 e que viriam a servir de modelo a Manet para o seu L’Exécution de Maximilien, que Manet pintou entre 1868/69. O primeiro contacto com a pintura de Goya que terá sido muito novo, em Paris, na Exposition universelle de 1878 onde, entre outras, estiveram pinturas da série negra, como El aquelarre, enviada pelo barão Frédéric Émile d’Erlanger na esperança de a vender, bem como ao resto da série que tinha mandado arrancar das paredes e colar em tela. Gorada a tentativa, acabou por oferecer o conjunto ao Museu do Prado, onde se encontram atualmente. Fala também numa série de fotografias desse conjunto que terá visto, de Jean Laurent (1816-1886), de origem francesa e que foi um dos mais importantes fotógrafos a trabalhar em Espanha no séc. XIX [SLA/LS/MISC/N67-K-020]. Não se sabe como Slavick terá tido conhecimento das fotografias uma vez que elas estiveram sempre mais ou menos incógnitas no Archivo fotográfico Ruiz Vernacci, iniciado por J. Laurent, hoje conservado no Instituto del Patrimonio Cultural de España. As fotografias terão sido encomendadas pelo próprio Erlanger para documentar as pinturas no seu lugar de origem.
- A primeira edição da série ocorreu em 1863 por iniciativa da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando.
- Fundado em 1755 por Fernando VI junto ao Manzanares, encontra o seu espaço atual em 1774 por iniciativa de Carlos III e abre ao público em 1781 após conclusão do projeto idealizado por Francesco Sabatini, remodelado entre 1785 e 1789 por Juan de Vilanueva. É totalmente abandonado durante a guerra sendo recuperado apenas em 1857.
- No caderno já referido [SLA/LS/MISC/N67-K-020]
- Id. [SLA/LS/MISC/N67-K-020]