Número 17

8 de Janeiro de 2022

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO
SLA/LS/VIS/V-1904-062

Numa manhã de março de 1904, Lazar Slavick está ao largo de Tenerife, a olhar a ilha, a bordo de um velho navio carga transformado em laboratório científico flutuante, fretado por um grupo de exploradores amadores a quem tinha pedido uma boleia até à ilha. Se as ilhas, no geral, sempre lhe suscitaram curiosidade, esta em particular tinha um lugar especial no seu imaginário.
No final da década de 90, tinha conhecido Hans Meyer no Bibliographisches Institut, em Leipzig, a casa editora de que o seu pai era proprietário (1). Com um forte interesse nas técnicas associadas à gravura, Slavick tinha ido estudar o processo de produção e impressão do volume de ilustrações da terceira edição da Neues Konversations-Lexikon, ein Wörterbuch des allgemeinen Wissens (2), que tinha visto em Bruxelas num livreiro da Galerie Bortier, admirado com a sua qualidade, nitidez e precisão no detalhe. Hans Meyer não lhe é uma figura desconhecida. As notícias e descrições do Kilimanjaro correram a Europa e mais tarde encontrou uma referência a Meyer no boletim da Real Sociedade de Geografia Inglesa com a notícia da ascensão de vários picos na ilha de Tenerife e deu particular atenção à nota que referia as 150 fotografias feitas no local (3). Segundo refere num dos seus diários (4), a seu pedido, Meyer deu-lhe acesso à documentação fotográfica onde admirou sobretudo as fotografias que mostravam uma paisagem deserta e agreste, de natureza vulcânica, ao nível do mar e depois iam revelando um mundo completamente diferente à medida que a altura ia escondendo o terreno sob um espesso manto de neve. A aridez rugosa do território dava lugar a uma superfície completamente branca a refletir luz por todo o lado desmaterializando o espaço.
Em 1896 tinha lido Die Insel Tenerife e mais tarde lerá o Der Kilima-Ndscharo, publicado em 1900, ambos da autoria de Hans Meyer onde descreve as duas viagens. As fotografias e as leituras, levam-no a preparar uma viagem primeiro a Tenerife, de logística mais simples, deixando para mais tarde o Kilimanjaro, o que nunca viria a acontecer.
E assim chegamos à manhã de março em que Slavick admira a ilha a partir do navio de carga. Com engenho, tinha conseguido montar um pequeno laboratório num compartimento do porão, apenas com o essencial que lhe permitisse preparar alguns materiais para experiências com diversos tipos de emulsão, processar alguns negativos (papel, chapas de acetato e vidro) e carregar a prensa que expunha à luz do sol para impressão por contacto. A precariedade do espaço deva-lhe algumas dificuldades, mas mesmo assim, de acordo com o seu diário, foi conseguindo fazer muitas incursões fotográficas e inúmeras experiências como era seu hábito, sempre à procura de uma resposta visual mais emocional que de rigor técnico. Quanto a esse tipo de rigor, aplicou-o em muitas fotografias feitas a pedido dos seus colegas de expedição, uma vez que esta tinha sido a moeda de troca para conseguir o seu lugar no navio. Cabia a ele o registo fotográfico oficial da expedição, apesar de haver algumas Kodak brownie a bordo. Foi tudo muito rápido. Uma coluna de fumo negro a sair do porão, uma luz alaranjada e uma explosão. Pensa-se que o fogo terá começado num compartimento contíguo aquele onde tinha montado o laboratório e o rebentamento terá sido provocado por parte da química fotográfica. A reação foi rápida e o fogo dominado em pouco tempo e não houve danos de maior a registar no navio. O pior foi para Slavick. Tirando as fotografias que ia fazendo para os seus companheiros de viagem e lhes ia entregando ou guardando na sua cabine, quase todo o seu trabalho pessoal estava no laboratório. Findo o rescaldo do incêndio, Slavick conseguiu recuperar alguns restos de negativos e alguns positivos, todos danificados, na sua maioria pelo fogo e pela água. É o caso da imagem que ilustra esta nota. É uma prova positiva de um fragmento de paisagem, junto à costa. Apresenta os bordos desfeitos, com marcas de queimadura na parte de baixo, sobretudo do lado direito. A prova está muito suja e tem alguma transparência, o que indica que esteve mergulhada nalgum tipo de produto oleoso que impregnou o papel. Slavick descreve no seu diário que a seguir ao choque e à desolação inicial, depois de ter espalhado pelo convés o que conseguiu recuperar, foi com surpresa que foi descobrindo que o acidente tinha na realidade melhorado algumas das imagens, como se lhes tivesse conferido alguma da emoção que procurava e estava difícil encontrar. (5)
Grande parte deste material recuperado desapareceu. Existem alguns negativos que estão praticamente ilegíveis (o que provavelmente agradaria a Slavick) e meia dúzia de provas, sendo esta a que melhor condensa e guarda a memória da sua origem.


(1) Hans Heinrich Josef Meyer (1858 –1929), geógrafo e explorador alemão, filho do editor Herrmann Julius Meyer (1826-1909), proprietário do Bibliographisches Institut, em Leipzig. É creditado como tendo sido o primeiro a atingir o cume do Kilimanjaro em 1889 e faz uma expedição a Tenerife em 1894.
(2) Enciclopédia que tinha sido iniciada por Joseph Meyer (1796–1856), pai de Herrmann Meyer e fundador da casa editora. A primeira edição apareceu em 1839, o ano do nascimento da fotografia e constava de 52 volumes. Já com Herrmann Meyer, foi reduzida a 15 volumes, o nome foi alterado e esta é que é considerada a primeira edição.
(3) The Geographical Journal, Volume 4, July to December, 1894, pág 274
(4) SLA/LS/MISC/N40
(5) “… parfois quelque chose de totalement étranger est incorporé dans les photographies et une image complètement banal est soudainement chargée de sens et d’émotion. “ SLA/LS/MISC/N47