Desta vez trago uma nota que mostra bem a riqueza e complexidade de um arquivo desta natureza.
Não são só as imagens em si, ou a diversidade dos materiais que foram (e ainda vão) aparecendo à medida que se vai tentando organizar o arquivo, mas as relações que se vão estabelecendo, os nomes que vão surgindo, sejam de pessoas, lugares, datas, palavras que vão contruindo uma teia de relações e desenhando uma cartografia de um lugar que, por vezes, parece só ter existência ali, no interior do próprio arquivo. Primeiro foi a imagem que me chamou a atenção. Estava coberta de uma camada de poeiras e fuligem que se tinha agarrado à superfície, tinha alguns bordos queimados e faltavam-lhe bocados que se foram perdendo ao longo do tempo. Quando começou a ser limpa, nem foi preciso descobrir a palavra Antwerpen para perceber o que era. Reconheci imediatamente a arquitetura da gare Antwerpen-centraal e não liguei muito à fotografia (1). Bruxelas tinha sido uma das bases de Lazar Slavick, onde manteve uma residência durante muitos anos e era natural que tivesse viajado e fotografado a cidade flamenga. Foi mais tarde, ao organizar um conjunto de correspondência, que comecei a ver a fotografia numa perspetiva completamente diferente e me apercebi que aquela bem poderia ser uma das primeiras fotografias do interior da estação.
A correspondência em causa era com Henriëtte van den Bergh, mãe de Fritz Mayer van den Bergh e criadora do museu com o seu apelido, em Antuérpia, em homenagem ao filho que morreu prematuramente em consequência de um acidente de equitação. Fritz Mayer (só juntará o nome da mãe mais tarde por razões que se prendem com a atribuição de um título nobiliárquico) era um colecionador de arte compulsivo e tinha como desejo abrir um museu com a sua coleção. Uma das suas paixões era o pintor Pieter Breughel, o velho, de quem acabará por comprar uma das peças mais importantes da sua coleção: Dulle Griet/ Margot la folle por uma quantia irrisória num leilão em Colónia, em 1894, uma vez que este tipo de pintura não era muito apreciado. Mas Fritz Mayer reconheceu imediatamente o que tinha diante dos olhos, já que conhecia bem a sua obra. É aqui, em Breughel, que os dois se cruzam. Slavick conhece Mayer em Bruxelas, nos Musées royaux de Peinture et de Sculpture de Belgique, em frente ao La chute des anges rebelles, de Breughel que desde 1848 fazia parte das coleções do museu. Durante a estadia de Mayer encontraram-se várias vezes em frente à pintura e as conversas acabavam quase sempre numa taverne do centro. É numa destas conversas que Slavick menciona um antiquário a quem costumava comprar gravuras, que teria para vender um conjunto de 22 gravuras com imagens de Breughel e que Mayer levará consigo para casa. A história é recordada numa carta enviada a Henriëtte após a morte de Fritz (2). Slavick está presente na abertura do museu, em 1904 e continuará a visitar a cidade não só por causa deste Breughel em particular, mas para uma investigação sobre paisagem no Musée royal des Beaux-Arts d’Anvers. Num caderno de notas de 1905, Slavick refere a novíssima Antwerpen-centraal e de como ficou de tal modo encantado com a obra que não resistiu a tentar fotografá-la apesar das dificuldades devido à baixa iluminação que se faz sentir, da parte da tarde, no outono (3). Podemos concluir, com alguma certeza, que será esta a fotografia referida no caderno.
As reflexões sobre a la chute des anges rebelles continuaram durante algum tempo sob a forma epistolar (4) em que Slavick propunha uma leitura com referências à dicotomia entre naturalia e artificialia, tão presente nos cabinets de curiosités que tanto admirava.
(1) [SLA/LS/VIS/V-1905-032]
(2) [SLA/LS/CORR/1901-FR-022]
(3) [SLA/LS/MISC/N23-E-008]
(4) ver, por exemplo, [SLA/LS/CORR/1898-FR-012]