Na primavera de 1913, Lazar Slavick encontra-se em Itália, como acompanhante de um jovem nobre de origem checa, que lhe tinha sido confiado por Bertha von Suttner (1843-19149), para uma recriação tardia e nostálgica do Grand Tour, esse grande périplo europeu que tinha servido como ritual de passagem para gerações inteiras da nobreza e das camadas mais abastadas da sociedade europeia e americana. Apesar de fora de tempo,(1) o contacto intensivo com a cultura clássica e com o renascimento italiano continuavam a fornecer bases sólidas de um ponto de vista cultural. Não é claro como Bertha e Slavick se conheceram, mas é quase certo que terá sido em Praga, dado que frequentavam alguns círculos culturais em comum e Slavick era conhecido, para além da sua produção visual, pelas suas viagens e aventuras. Também não há referências à identificação do jovem, já que Slavick se refere a ele nos seus relatos como A. não sabendo se é a inicial do nome ou do apelido. Ele próprio tinha feito o Tour, muito jovem, e tinha sabido aproveitar o seu valor. Aliás, a Itália era um destino frequente de Slavick, sobretudo as cidades de Florença, onde tinha feito um levantamento fotográfico de parte das coleções dos Uffizi(2) e Veneza, onde o encantava sobretudo a luz da cidade, a sua arquitetura e obviamente a situação particular do ponto de vista geográfico e urbano, uma cidade flutuante onde as ruas são canais e as praças que se vão transformando em lagos durante a Acqua Alta. Foi lá que se cruzou, por acaso, com Proust em maio de 1900, na viagem que tanto o marcou e que viria a estar na base de algumas passagens da sua Recherche.(3) De volta a 1913, nos seus cadernos vão existindo referências aos lugares que vão visitando e ao que vão fazendo. Slavick vai registando fotograficamente a viagem, com especial foco nas vistas das cidades, na paisagem Toscana e em algumas obras de arte com particular atenção na escultura (não lhe dava especial prazer fotografar pinturas, já de si planas). Existem duas caixas com materiais fotográficos desta viagem, muitos negativos e respectivas provas positivas, realizados maioritariamente com uma Kodak, bem como negativos de vidro que preferia para as fotografias que obrigavam a uma exposição mais rigorosa e demorada. Foi nessa caixa, numa pasta onde estão algumas fotografias de diversos grupos escultóricos referidos nos diários de viagem, que se encontrou a fotografia que ilustra esta nota. Trata-se de uma fotografia do famoso grupo escultórico Laocoonte e os seus filhos, uma das obras mais famosas que nos chegou da antiguidade. Apesar de referido por várias vezes nas suas notas, onde aponta diferenças entre a versão do Vaticano e a dos Uffizi, relembra que também tinha fotografado, há muitos anos, o exemplar da Royal Academy em Londres. É certo que é esta a origem da fotografia pela disposição e escala das figuras e pelo estado de conservação. Acresce que existem alguns negativos de papel deste mesmo grupo escultórico, utilizando a técnica da calotipia, apesar de nenhum corresponder exatamente a esta prova, um positivo em papel salgado em muito mau estado, com marcas de ferrugem e o que parecem ser restos de contaminação por betume. Tendo em conta as diversas fases experimentais que encontramos ao longo da sua carreira, não é de estranhar que esta imagem tenha feito parte de uma série mais alargada em que encontramos, quase exclusivamente, representações de esculturas. As marcas de betume parecem indicar que este exemplar fez parte de uma tentativa de impressão mecânica.
(1) O Grand Tour teve o seu auge nos séculos XVIII e XIX. Tinha uma duração que podia variar entre largos meses e algumas semanas (sobretudo depois da industrialização, do caminho de ferro e dos barcos a vapor). Para quem vinha de Inglaterra, a entrada no continente fazia-se pela França ou pela Bélgica, onde se iniciava o périplo, seguia-se pelos Alpes, atravessava-se a Suíça e chegava-se a Itália onde se visitava, entre outras, Turin, Florença, Bolonha, Veneza e Roma. Na segunda metade de oitocentos visitavam-se por vezes, as recentemente descobertas ruínas de Pompeia e Herculano. No regresso, fazia-se o roteiro germânico com passagem por Viena, Berlim e pela Flandres.
(2) Em Florença é visita frequente da casa dos Fratelli Alinari, que aí tinham aberto o seu estúdio em 1852, e que eram a casa editora mais importante da época. Com eles, Slavick trocava ideias sobre a importância e o futuro da documentação fotográfica e questões, sobretudo de ordem técnica, relacionadas com a reprodução de obras de arte.
(3) Slavick já conhecia Proust de Paris. Deste encontro, escreve no seu caderno: ontem vi Proust; nem o sabia aqui. Sentámo-nos à sombra, para fugir ao calor que se faz sentir e falou-me de algumas das imagens que se estão a impregnar na sua memória, na emoção com que reage a tudo o que pensava conhecer antes de ter aqui chegado. Percebi que o poder da fotografia é limitado na descrição dos lugares, algo que já desconfiava. Por isso gosto da experimentação e das imagens cheias de erros que tantas vezes produzo, guiado apenas pelo lado visual da matéria fotográfica. (SLA/LS/MISC/N39)