Número 23

25 de Junho de 2022

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO
SLA/LS/EXP-C020-18


Cerca de 1902, há uma ideia que ocupa grande parte das notas de Lazar Slavick: a produção de um sistema de revelação imediata das fotografias, após a exposição, de modo a produzir uma imagem final, diretamente positiva. A ideia era simplificar o processo de revelação dos negativos e produção de positivos o que atrasava a visualização do fotografado. E este era um dos pontos cruciais para Slavick. Se bem que ele tivesse uma necessidade prática de ir obtendo as imagens positivas do que ia fazendo ao longo das suas viagens, sem ter de recorrer a toda a logística necessária ao processamento dos negativos (que ainda assim fazia por necessidades de qualidade nos resultados) também pensava em todos os praticantes esclarecidos, como ele dizia, que se fixavam na magia da prova, no aparecimento da imagem em positivo na superfície do papel e que, por não praticarem as artes da revelação e impressão, se viam afastados deste que era um dos momentos que mais prazer todo o processo fotográfico poderia oferecer.(1) Pouco se sabe, em termos práticos quanto a desenhos e esquemas, do que Slavick tinha em mente. Segundo descreve mais tarde num dos seus diários,(2) o caderno onde tinha a maior parte dos desenhos terá sido perdido numa viagem que atravessou o norte de África até à Palestina, numa tentativa de retraçar os passos de Francis Frith (1822-98) na sua famosa viagem de 1858-59.(3) Na realidade, aquilo que procurava era um processo que permitisse obter positivos diretos da sua câmara, sem necessidade de passar pelo laboratório tradicional. Pelas suas descrições, podemos afirmar com alguma certeza que pensou num sistema que produzia imagens positivas em papel, que utilizava um suporte previamente sensibilizado com nitrato de prata e iodeto de potássio (que podia ser guardado por muito tempo) e que era resensibilizado momentos antes de ser exposto, sendo imediatamente metido num invólucro estanque à luz, que continha a química necessária à revelação da imagem produzida e passado para um outro, agarrado ao primeiro, com a química de estabilização. Tudo era feito com recurso a embalagens descartáveis, de utilização única, com simples manipulação que não requeria grandes cuidados. A ideia base, como refere, partiu do processo inventado por Hyppolyte Bayard (1801-87) que produzia imagens positivas em papel. Slavick conhecia bem a descrição do processo tal como tinha aparecido no relato da sessão da Académie des Arts (4) e publicada no Moniteur universel de 13 de novembro de 1839. Tinha lido as atas da Academia das Ciências (5) e sobretudo conhecia bem o livro de Blanquart-Évrard (1802-72) com quem tinha aprendido muitas técnicas de impressão e onde o procedimento de Bayard aparece descrito de forma simplificada, mas eficaz.(6) O processo nunca tinha sido utilizado por terceiros e o próprio Bayard, na Mission Heliographique, sabe-se que terá utilizado o negativo de albumina em suporte de vidro.(7) Os problemas principais eram de duas ordens. Um dizia respeito ao próprio processo e que se prendia com os longos tempos de exposição requeridos que poderiam chegar perto de uma hora de exposição em condições de muito fraca luminosidade; o outro, prendia-se com uma fase importante do processamento químico e que dizia respeito à lavagem para retirada da química residual tendo em vista a não degradação química da imagem. Para este problema, Slavick nunca encontrou resposta satisfatória o que o levou a abandonar o projeto. Como a história veio a demonstrar, a solução acabou por chegar mais tarde com o sistema Polaroid, desenvolvido por Edwin Land em 1948.(8)

As imagens produzidas eram de pequena dimensão (cerca de 9×12 cm) e subsistem no seu arquivo algumas provas positivas que testemunham as suas tentativas de criação de um primeiro sistema de fotografia instantânea. Na sua maioria estão bastante degradas devido sobretudo à falta de lavagem, um passo essencial para retirar a química da superfície da imagem de modo a que, após a fixação, a imagem não sofra degradação pela agressão dos componentes utilizados. Trata-se, no caso da fotografia que ilustra esta nota, de uma fotografia de uma escultura clássica, um dos temas que é recorrente na sua obra. O facto de se tratar de um objeto inanimado, relembra a necessidade de recorrer a longos tempos de exposição. Mas também nos traz um outro tema e que é um tema mais geral e abrangente na fotografia e que tem a ver com a diversidade dos modos como entendemos a prática fotográfica: entre o ponto de vista e o enquadramento, o olhar e resposta sensível à luz ou a redução do mundo a uma outra realidade, a fixação do tempo e a marca de uma distância entre o observador e observado, sem esquecer a materialidade da prova fotográfica, a obra de Slavick é sempre um convite à reflexão sobre a natureza destes objetos perecíveis.

  1. SLA/MISC/N18
  2. SLA/MISC/N20
  3. Egypt and Palestine, Photographed and Described by Francis Frith, 2 volumes, London, James S. Virtue, 1858-1859
  4. Raoul Rochette, Rapport sur les dessins produits par le procédé de M. Bayard (Académie des beaux-arts, séance du 2 novembre 1839) (acessível em https://www.retronews.fr/journal/gazette-nationale-ou-le-moniteur-universel/13-novembre-1839/149/1551163/3)
  5. H. Bayard, Note sur un procédé nouveau de photographie sur papier, séance du 14 avril 1851, Comptes rendus de l’Académie des sciences, vol. XXXII, p. 553. (acessível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2989j/f552.item)
  6. Désiré Blanquart-Évrard, La Photographie, ses origines, ses progrès, ses transformations, Lille, Danel, 1869 (acessível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8452738x/f29.item)
  7. A Mission héliographique, foi uma encomenda pública do estado francês, por parte da Commission des Monuments Historiques, em 1851, que tinha por objetivo inventariar, através da fotografia, uma parte do património construído num total de 157 edicícios. Os fotógrafos participantes foram Henri Le Secq, Gustave Le Gray, Auguste Mestral, Édouard Baldus e Hippolyte Bayard, o único de quem não se conhecem os negativos ou provas positivas, já que não terá entregado, por razões algo obscuras, nenhum exemplar do seu trabalho à comissão encomendadora.
  8. Edwin Land (1909 – 1991) funda a companhia Polaroid que virá a ser responsável pelo desenvolvimento do filme instantâneo. O primeiro filme a ser comercializado data de 1948 e era monocromático, seguindo-se em 1963 a primeira versão do filme a cores (ambos funcionando pelo princípio de negativo/ positivo despeliculável) e o primeiro filme integral a cores em 1972, que aparece juntamente com a mítica câmara SX-70.