O gosto pelo naturalismo e pelas ciências, Slavick deve-o, em grande parte, à figura do seu avô paterno Franz, naturalista amador que o levava com frequência nas suas viagens de estudo por inúmeras cidades europeias. Aproveitava sempre para irem visitar coleções de artefactos e espécimes de natureza diversa que se reuniam nos cabinets de curiosités como o da famosa maison Deyrolle da Rue du Bac, em Paris. Ali lhe contava histórias fabulosas, de animais fantásticos e nunca vistos que tinha encontrado nas suas viagens, de plantas com formas e cores muito diferentes das que estava habituado a ver no jardim de sua casa, de lugares desérticos que pareciam perto do fim do mundo. Apesar de entrever que nem sempre seriam verdadeiras, nestas narrativas Slavick encontra todo um mundo a descobrir e a conhecer e que era necessário registar e inventariar. Terá sido numa destas conversas que ouve pela primeira vez falar de Charles Darwin (1809-1882), que o avô tinha conhecido em Londres através da Royal Society. Falava com entusiasmo na famosa segunda viagem do HMS Beagle (1831-36), das descobertas de Darwin, das descrições dele e do capitão do navio, também ele um homem de ciência, e do final trágico que tinha acometido os dois capitães do navio (1). A Patagónia faz deste modo a sua entrada no imaginário do jovem Lazar Slavick e vai acompanhá-la ao longo dos anos, esperando uma oportunidade para concretizar o seu desejo de ver a Tierra del Fuego, as terras do fim do mundo, como dizia o seu avô. O momento surge em finais de 1903 numa expedição financiada por um obscuro aristocrata montenegrino, primo de Darinka Kvekić (2) de seu nome Alexander Mirković que pretendia atravessar o estreito de Beagle. Slavick soube da notícia em Praga através de um amigo que tinha sido encarregado de encontrar pessoas de interesse que estivessem dispostas em participar na viagem. Candidatou-se e pelos visto foi tido como alguém que poderia acrescentar alguma credibilidade à empresa, através dos seus interesses nas ciências naturais e na fotografia.
A expedição foi um fracasso, nada que não previsse desde o início (3), mas conseguiu chegar a Ushuaia e esse era o seu objetivo principal, obviamente não revelado. Finalmente, estava na terra do fim do mundo. Os quase dois meses que estiveram parados, devido a uma avaria, deu-lhe para fazer algumas expedições com guias locais. Centrou-se na ideia de subir ao Glaciar Martial e ir ao encontro das grandes massas de gelo. Já tinha estado nalguns glaciares da europa, mas este tinha um significado diferente. Era um lugar remoto, desolado, perto do polo Sul, um gelo do fim do mundo. Ao mesmo tempo, era um gelo muito antigo e guardava em si a história do próprio mundo, em camadas sucessivas, onde cabiam todas as eras do planeta. E era esta história, que Slavick queria passar para as suas imagens. Era um interesse mais filosófico que visual. Tinha estado na Pan-American Exposition em Buffalo, NY em 1901. Ali tinha admirado as fotografias de Wilson Bentley (1865-1931) sobre cristais de gelo. Era um modo diferente de olhar a natureza, com aquelas imagens que revelavam o que é (quase) invisível para o olho humano, e que nos traziam a estrutura das forças que organizam as formas visíveis da natureza, para mais a partir de uma matéria tão instável e volátil como o gelo. Aquelas macrofotografias eram como uma revelação não do mundo visível, mas da sua essência. Esta ideia de que a fotografia, embora lidando de forma imediata com o mundo da visibilidade tal como se apresenta em frente da câmara do fotógrafo não tem de se deixar dominar por ele, já a andava a trabalhar desde que tinha visto pela primeira vez as Celestografies de Strindberg (4) e estava presente nas suas inúmeras experiências quer a partir da impressão de negativos, quer de fotografias diretas por mera exposição à luz de materiais fotossensíveis.
Na fotografia que acompanha esta nota, vai mais longe na exploração destes conceitos e, na expedição ao glaciar, traz consigo alguns blocos de gelo que vai utilizar na revelação e impressão de um conjunto de fotografias, de carácter banal, que fez de finas placas de gelo que encontrou no Martial. Esfregado em cima de química espalhada diretamente no papel, moído e misturado com química, derretido e transformado em água para as lavagens, Slavick vai experimentando e anotando alguns resultados(5). Não sabemos ao certo qual a técnica precisa que utilizou. As fotografias têm na sua maioria baixo contraste e em muitos casos mal se conseguem ver (o que provavelmente se deve à baixa temperatura da química). Este, apesar da degradação devida a uma quase certa má e insuficiente lavagem da prova no final, é dos exemplares que melhor conservados se encontrou. Nas costas, a lápis, apenas se vê a inscrição: “Feuerland/ eis”. As múltiplas referências que encontramos a C.S. Pierce (1839-1914) nos seus cadernos, ajudam a enquadrar este tipo de produção de Slavick numa reflexão continuada que fazia sobre a natureza da imagem fotográfica, que via mais como indicial, um acumular de vestígios e de camadas de sentido, que o mero resultado técnico do encontro, no caso presente, de um bloco de gelo, de uma câmara fotográfica e de um fotógrafo.
- Pringle Stokes (1793-1828), capitão do HMS Beagle na sua primeira viagem de exploração do Atlântico Sul, suicida-se devido à depressão que apanhou no inverno durante a passagem do estreito de Magalhães, sendo substituído por Robert FitzRoy (1805-1865) que terminaria essa viagem e seria o capitão do navio na sua segunda viagem de exploração. Anos mais tarde, uma depressão e graves problemas financeiros, conduzem-no ao suicídio.
- Casada com o Príncipe Danilo I que reinou no Montenegro entre 1851 e 1860.
- Escreve no seu diário que “Dificilmente chegaremos ao final. Não me parece que a tripulação esteja preparada e que o navio seja o mais apropriado. Do lado dos passageiros, o espírito é mais de cruzeiro que de estudo. Por mim, só quero chegar a Ushuaia” SLA/LS/MISC/N25-F-009.
- Ver Notas de arquivo, Revista Osso número 1
- Ver Notas de arquivo, Revista Osso número 4