Se as grandes invenções não nascem por acaso, se as devemos entender num quadro mais global de desenvolvimento, de conhecimento científico e de necessidades às quais há que dar resposta, as descobertas estão maioritariamente ligadas ao acaso, ao acidente. Na fotografia, muito do que aconteceu ao nível plástico foi através da experimentação, por vezes da má manipulação da química fotográfica. Se alguma historiografia atribui o nascimento do quimigrama enquanto prática fotográfica consciente (1) à figura do belga Pierre Cordier (1933), que dizer dos trabalhos já referidos de Strindberg ou do próprio Slavick que viam na manipulação dos materiais fotossensíveis e na sua química, um meio de obtenção de imagens significativas do seu próprio universo fotográfico? Se muitas destas técnicas, como o fotograma, fazem parte da história do nascimento da fotografia, agora são utilizadas conscientemente na produção de um corpo de trabalho que, para além da eficácia visual enquanto forma de expressão, são uma reflexão sobre a natureza e a finalidade do ato e da representação fotográfica.
A imagem que ilustra esta nota provém de um lote de experiências em que Slavick junta diversas técnicas que explorava à época. Neste caso temos uma impressão fotográfica tradicional que foi complementada com a manipulação química direta do suporte fotográfico na esteira do que já vinha fazendo em trabalhos anteriores e que pode ser enquadrada na prática do “chemogramm” (2).
Mais curiosa será a escolha desta imagem em particular, sobretudo o facto de a ter guardado com algum cuidado, no meio de tantas imagens dispersas e semidestruídas. Segundo algumas notas num dos seus cadernos (3), ao fazer uma limpeza no seu estúdio de Bruxelas, encontrou um recorte de uma notícia que tinha guardado sobre a venda do quadro A Morte de Sardanápalo (1827), de Eugène Delacroix (1798-1863), em 1893 ao barão, banqueiro e colecionador Joseph Raphaël Vitta (1860-1942), por Etienne-François Haro (1827-1897), pintor, restaurador e colecionador de pintura, amigo de Delacroix e que a tinha em seu poder (4). Foi com Haro que Slavick a viu pela primeira vez, ficando completamente esmagado pelo impacto da representação dos momentos de loucura que antecedem a morte de Sardanápalo, consumido pelo fogo, a seu pedido, com os seus bens, mulheres e escravos. A ela voltará, após 1921, quando a pintura entra nas coleções do Louvre. Apesar de conhecer a famosa montagem de Oscar Gustave Rejlander (1813-1875), Two ways of life (1857), não lhe agradavam a artificialidade da representação e a montagem fotográfica e aguardava pelo momento em que seria possível fotografar uma cena daquela natureza sem recorrer a artificialismos. E esta cena, representada por Delacroix, fazia definitivamente parte dos seus planos (que nunca haveriam de ser realizados). Lembrou-se então de umas fotografias que tinha feito, havia uns anos, no British Museum. Em particular de uma reprodução de um baixo-relevo assírio que mostrava Assurbanípal, último dos reis da Assíria (669-630/627 a. C.), numa caçada. Também conhecido como Sardanápalo, esteve na origem do drama de Byron que retrata de modo ficcional o final trágico desta figura.
Slavick vai recuperar os negativos e imprime algumas provas que trabalha posteriormente resensibilizando parte do suporte, expondo-o à luz, trabalhando essa área posteriormente com química diversa. A coloração de base, em tons acastanhados, não parece derivada de intervenção química, mas sim de uma fina camada de aguarela que terá sido utilizada para colorir a prova (também poderá ter sido utilizada uma camada muito diluída de betume judaico uma vez que era um material de uso corrente no seu trabalho de gravura. Num outro caderno (5) escreve que queria uma imagem que fosse desaparecendo lentamente, como que consumida ao longo do tempo. Na realidade, o tempo acabou por lhe fazer a vontade. São raras as suas imagens que não se foram degradando devido à falta de tratamento que as estabilizasse quimicamente e impedisse ou abrandasse a sua destruição. Ou talvez não; não podemos deixar de pensar que esse era um dos seus objetivos e que, no final, tudo faz sentido que assim seja.
- O quimigrama consiste na criação, em suporte fotográfico fotossensível, de imagens obtidas apenas pela manipulação da luz e da química, sem recurso a uma câmara fotográfica. O seu uso moderno está ligado à figura de Pierre Cordier (Bruxelas, 1933), que desenvolve o conceito nos anos 50 do século passado (chimigramme). Mais tarde, o alemão Josef H. Neumann (1953) desenvolve, em 1976, uma variação do procedimento a que chamou chemogramm e que se processava em duas fases: a produção tradicional de uma imagem e, antes do final do processamento da imagem positiva, o suporte era de novo exposto à luz e manipulado com diversos agentes químicos que alteravam a natureza da imagem fotográfica.
- Ver nota anterior. Por falta de um vocábulo de uso corrente em português, optou-se por manter o termo original em alemão, tal como proposto por Neumann. Na criação do termo, Neumann utilizou a palavra chemie (química em alemão) e substituiu o “i” da palavra francesa chimie que estava na origem de chimigramme, por um “o” para referenciar o processo óptico que, neste caso, assumia particular relevância uma vez que a base da imagem era uma impressão tradicional em que o dispositivo óptico está na base da representação fotográfica.
- SLA/LS/MISC/N28
- Etienne-François Haro tinha a particularidade de ter sido aluno e posteriormente amigo de Delacroix e Ingres (1780-1867), os dois grandes rivais da pintura da época e que representavam dois mundos distintos. Foi intermediário de ambos na compra e venda das suas obras, para além de os ir mantendo atualizados quanto à vida de cada um deles.
- SLA/LS/MISC/N29