Não é a primeira vez que aparecem ligações a Portugal no arquivo Slavick e esta nota é mais um desses casos. Apesar das muitas pontas soltas que a envolvem, podemos recuperar, com alguma segurança, parte do percurso desta imagem. No final da primeira década de novecentos terá chegado a Slavick, na sua casa de Praga, uma encomenda vinda de Lisboa. Esta encomenda, entregue em mão por um amigo, tinha-lhe sido confiada por um fotógrafo referenciado como A. de Lisbonne (1) num dos seus diários com uma nota para não se esquecer de lhe escrever a agradecer a coleção de fotografias que lhe tinha enviado e onde se destacava uma série de três fotogravuras, da Sé de Lisboa, “impressas no atelier que tinham visitado no Porto; ficaram muito bem impressas” (2). Não se sabe o que terá acontecido a estas fotografias, já que não aparece nenhuma no seu arquivo. É possível que tenham desaparecido durante uma das mudanças entre Praga e Bruxelas por altura da primeira guerra; talvez mais tarde, numa das muitas mudanças de casa e atelier. O certo é que do lote referido não aparece registo ou rasto, à exceção de algumas cópias que Slavick fez tendo em vista a sua reprodução. Também a autoria não é certa. Não sabemos se eram negativos feitos por si e que teria deixado para testes de impressão no Porto ou de fotografias de autores diversos, talvez do próprio A. ou mesmo de Marques de Abreu. A referência no final da frase “ficaram muito bem impressas” sugere que possam ser da sua autoria (3). Mais certezas temos em relação à imagem que ilustra esta nota. Trata-se de uma cópia feita por Slavick de uma dessas fotografias que recebeu de Lisboa. Mas não é uma cópia vulgar. É uma imagem feita a dois tempos, fruto de dois acidentes que ocorreram em momentos diferentes. Segundo descreve (4), fez algumas reproduções de uma das fotogravuras usando técnicas diferentes porque queria perceber qual se adaptaria melhor à função e, partindo da mesma realidade, quais as diferenças na representação que iam ocorrer e como isso afetaria a nossa percepção da realidade. Para uma das reproduções, resolveu utilizar o colódio. Segundo Slavick, era uma técnica que já não utilizava há muito e por isso teve alguma dificuldade em preparar a placa de vidro. Não sabe bem o que aconteceu, mas refere que numa das vezes, depois de revelar o negativo, talvez por excesso de revelação, a emulsão deslizou ligeiramente, como se fosse escorregar do vidro e deformou a imagem. Em vez de descartar o negativo, o seu primeiro impulso foi o de preparar uma folha de papel e fazer imediatamente uma prova. Depressa esqueceu o motivo inicial que o tinha levado a fazer a reprodução. Percebeu que uma janela se tinha aberto para um mundo de possibilidades de manipulação do negativo, através do acaso ou de uma intencionalidade mais ou menos controlada que lhe permitia controlar o registo visual fotográfico dando novos sentidos à realidade fotografada. Se o acaso e a manipulação química dos materiais fotossensíveis já faziam parte das suas experiências, agora ia dar um passo em frente ao manipular a representação contrariando o rigor da perspetiva e dos constrangimentos do dispositivo óptico da câmara escura. Estava consumado o primeiro acidente. O segundo viria alguns dias depois. Agarrou num frasco com nitrato de prata que tinha numa prateleira por cima da sua mesa de trabalho e onde tinha algumas destas provas espalhadas. O frasco escorregou-lhe das mãos e partiu-se com estrondo na mesa, espalhando a química por todo o lado. Querendo salvar as provas, tirou-as rapidamente da mesa com algumas a escorrer nitrato e outras já coladas umas às outras. Na confusão, abriu a janela para ver melhor o que estava a fazer e aconteceu o inevitável. A luz escureceu as provas quase de imediato. Escreveu (5)que mais do que ver as imagens a escurecer, o que lhe deixou uma marca mais profunda foi ver que as suas mãos escureciam à mesma velocidade que as fotografias, como se estivessem ligadas por um destino comum. Assim andou uns dias, com as mãos negras até que a pele se foi lentamente renovando e a cor voltando ao normal. Não fez grande esforço de tentar diferentes tipos de produtos para retirar a química. De algum modo servia-lhe de reflexão sobre a natureza das imagens fotográficas e o nosso destino comum.
(1) SLA/LS/MISC/N14. É quase certo tratar-se de Augusto Bobone, com quem tinha viajado pelo país, como já foi referido em notas anteriores.
(2) Idem. Cremos que será uma referência à oficina de zincogravura, fotogravura, símile-gravura de Marques de Abreu na antiga Rua de S. Lázaro no Porto, onde Slavick esteve, pelo menos duas vezes, a estudar os processos de impressão
(3) Não seria um caso isolado. Algumas vezes fazia imprimir fotografias suas em ateliers reconhecidos para depois comparar os resultados com a sua própria técnica de impressão.
(4) SLA/LS/MISC/N18
(5) Idem.