SLA/LS/VIS/EXP-C011-N21
« ni mirroir, ni mémoire », foi a anotação que Slavick fez a lápis nas costas desta fotografia. Por certo é uma referência a Oliver Holmes (1809 – 1894) (1) e ao texto onde este discorre sobre a daguerreotipia, a fotografia e a estereoscopia. Segundo as suas notas, Slavick enviou uma carta a Holmes a pedir-lhe opinião sobre o processo da estereoscopia e este respondeu-lhe enviando um exemplar da The Atlantic com um texto seu sobre o tema (2). Se a parte técnica do texto ficou muito aquém daquilo que esperava, toda a parte de reflexão sobre a fotografia e a percepção deixaram-no interessado, em muitos casos indo ao encontro das suas próprias ideias, noutros dando-lhe argumentos para a sua refutação. As profusas notas num dos seus cadernos disso nos dá prova (3). Rico em metáforas e carregado de uma prosa de pendor poético, Holmes define a invenção da fotografia como a de “um espelho com memória” fazendo alusão à dimensão especular da fotografia, à capacidade de fixação do detalhe, apesar de saber (e de o referir) que o processo de formação das imagens não é o mesmo. Característica que é acentuada pelo lado físico da daguerreotipia, obtida sobre uma chapa de cobre que a fina camada de prata que a reveste a transforma num espelho (quase literalmente um espelho o que dificulta a sua observação), mas que se estende à imagem impressa em papel com a devolução desse lado especular da fotografia. Holmes distingue a daguerreotipia da fotografia. Esta é obtida pela impressão de um negativo, obtido diretamente por exposição ao mundo natural e onde tudo está “profundamente errado”, com todos os valores lumínicos invertidos, mas corretamente invertidos em termos da gradação da luz, correspondendo o mais escuro ao mais claro e este ao seu contrário. É desta “massa de contradições”, segundo Holmes, que a verdade se vai revelar através da sua transformação em positivo. Da estereoscopia, se a parte técnica não o interessou, já a descritiva deu-lhe para muitas notas no seu caderno, da solidez que o processo dá às formas, à ilusão espacial que engana os nossos sentidos. A ideia de que a fotografia, para além de todo o lado técnico que a suporta, era uma construção elaborada na nossa mente através de complexos processos de reconhecimento de formas e experiências, ocupava um dos lugares centrais nas preocupações de Slavick e que, de certo modo, também estão expressas nesta imagem que ilustra esta nota. Outros pontos o interessaram, como a questão da coloração das fotografias que, na maior parte dos casos não resultam muitas vezes por deficiência e inépcia na aplicação da cor, noutros porque acaba por introduzir algum artificialismo que afasta a representação da realidade (o que para Slavick não é necessariamente um defeito) e, em alguns casos, tudo parece harmonizar-se e a cor acaba por acrescentar realidade à representação. Também a ideia da constituição de uma grande biblioteca universal de imagens que iria organizando as formas do mundo, descrevendo-as e classificando-as como se faz aos livros, estava igualmente nos planos de Slavick (4). Holmes refere igualmente a capacidade da fotografia, através de exposições cada vez mais rápidas, parar o tempo o que, no caso da estereoscopia, tinha o interesse adicional de não se limitar ao plano mas estender-se ao volume, como se arrancássemos ao fluxo temporal não uma imagem plana, mas um pedaço concreto da realidade (5). Mas o ponto que lhe chamou mais a atenção foi uma pequena nota, ainda sobre a estereoscopia e os pares de imagens falhadas. A estereoscopia baseia-se em pares de imagens que são feitas com uma ligeira diferença de ponto de vista, simulando a distância entre os nossos olhos. Nós vemos imagens ligeiramente diferentes com cada um dos olhos e é a interpretação da soma dos dados dessas imagens que nos dá a noção de volume. As fotografias resultantes são observadas num dispositivo que nos permite observar cada uma das imagens apenas com um dos olhos simulando assim o ato de ver. Nos primeiros tempos deste processo, as fotografias eram captadas não ao mesmo tempo, mas em tempos diferentes por causa da preparação química dos suportes. Isto fazia com que muitas vezes houvesse algumas incoerências entre as duas imagens com objetos em falta, por exemplo pessoas, animais ou veículos que tivessem mudado de posição. Nestas falhas (faltas), o que se perdia para a representação, ganhava-se para a imaginação tentando reconstruir o que faltava num movimento entre o volume e o plano. Mais uma vez estávamos num domínio que ia para além da mera percepção e que arrastavam a imagem para o lado da construção de sentido que interessava Slavick. Daí a anotação nesta imagem. A imagem é contemporânea de outras de um período muito experimental (de que já falámos em notas anteriores) e em que chegou a fazer imagens sem câmara, utilizando apenas luz e a interação da química fotográfica com o suporte. Para Slavick, a fotografia podia ser muito mais que a mera representação da realidade aparente e visível (o lado especular) e não fixar para memória futura uma coisa vista, mas ser potenciadora do desencadear de outras memórias, por vezes escondidas, no confronto do espetador com as formas inusitadas que por vezes a matéria fotográfica nos traz.
- Oliver Wendell Holmes Sr. (1809 – 1894) cientista, escritor, poeta e um dos fundadores, em 1857, da revista The Atlantic, ainda hoje editada. Em 1860 criou um dispositivo simples para visionamento de fotografias estereoscópicas.
- Holmes, O., The Stereoscope and the Stereograph, The Atlantic Monthly, volume 6 (1859)
- SLA/LS/MISC/N22-J-012
- Estamos em 1859. A ideia da fotografia colecionar o mundo foi fazendo o seu caminho (muitos caminhos), praticamente desde o seu início. A de Holmes era utilizando a estereoscopia. Se bem que com uma finalidade diferente, o famoso e inacabado Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, só terá início em 1927
- Ironicamente, o texto é de 1859 e nele Holmes afirma que a próxima guerra europeia ia trazer imagens como nunca tínhamos visto, por exemplo do momento exato da explosão de uma bomba, ou do encontro de baionetas em combate. Dois anos mais tarde, não na europa mas na sua américa, iniciava-se a guerra civil e sabe-se o papel que a fotografia desempenhou durante o conflito.