SLA/LS/VIS/EXP-B002-034
A imagem desta nota é facilmente reconhecível. Identificamos de imediato a famosa L’Inconnue de la Seine, que fez furor a partir do início do século XX, povoando as paredes de casas da burguesia, de artistas, invadindo a literatura, a fotografia e o cinema (1).
Trata-se de uma figura em gesso, tirada a partir de um molde que teria sido feito diretamente do rosto de uma jovem suicida que tinha ido parar à morgue de Paris, depois de ter sido retirada das águas do Sena, onde se tinha afogado. O molde teria sido feito por Michel Lorenzi, moldador italiano, vindo de Lucca, que tinha aberto em 1871 um atelier de reproduções em gesso no número 21 da Rue Racine, perto da morgue (2). Após entregar um exemplar, teria feito um outro que terá exposto na montra do seu atelier. É esta exposição pública que leva o jovem Rainer Maria Rilke (1875-1926) a descrever a visão desta beleza singular no seu Anotações de Malte Laurids Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge), publicado em 1910 (3).
Na realidade, a origem desta aparente máscara mortuária é um mito. Sempre foi posta em causa a veracidade de corresponder uma pessoa morta, dada a expressão de tranquilidade que o seu rosto apresenta, tendo em conta que se trataria de uma morte por afogamento. Também corria a versão de que seria uma jovem que tinha morrido com problemas pulmonares, mas, mais uma vez, não seria fácil obter do natural uma expressão destas, apesar de se saber que os modeladores trabalhavam os moldes retirando imperfeições ou adaptando as feições do retratado. Há dados que nos dizem que a Inconnue de Lorenzi, se tratará de uma versão de um modelo anterior e que será uma máscara feita a partir do natural, mas de uma modelo profissional que trabalhava para artistas. No famoso livro Cours de Dessin, de Charles Bargue (1826?-1883) e Jean-Léon Gérôme (1824-1904), publicado em 1868-69, na gravura 53, já aparece a figura da desconhecida, desenhada “d’aprés la bosse“, identificada como “jeune femme” e que o gesso terá sido modelado “sur nature“, o que reforça esta tese de que seria uma modelo de artista. Para mais, à data da publicação, Lorenzi ainda não tinha aberto o atelier. O modo como o cabelo está arranjado, lembra os penteados que estiveram em voga durante o Segundo Império (1852-1870), o que é outro sinal que a sua produção pode ser mais antiga. Em 1890, a máscara já tinha viajado para os Estados Unidos. À volta dessa data, Augustine H. Folsom (1846-1926), faz uma fotografia de uma estudante, numa aula noturna de desenho, numa escola pública de Boston, a copiar uma máscara da desconhecida do Sena. Mesmo no caso de Lorenzo, sabe-se que este não seria o molde original. Trata-se de uma segunda versão, provavelmente feita a partir de fotografias do original, que apresenta ligeiras diferenças, e que acabou por estabilizar a imagem da jovem desconhecida.
Resta saber, como chegou esta imagem a Slavick. Sabemos que ele tinha uma cópia, mas da versão mais recente, a mesma que Rilke viu. Tem referências escritas a um modelo que encontrou em Paris e teve a ideia de produzir reproduções fotográficas para venda. Que se saiba, não há registo dessa edição, apesar de existirem vários testes de impressão quase todos em mau estado. Pode ter conhecido a versão anterior de Lorenzi no seu atelier, já que durante um tempo frequentou a Ancienne École Royale de Dessin, na Rue de l’École de Médecine, perto da Rue Racine (e onde teve contato com o livro de Bargue e Gérôme). Também era assíduo da recém-criada Flammarion, que ficava umas portas ao lado de Lorenzi. Outra hipótese é ter sido através de Jean-Baptiste Adolphe Goupil (1806-1893), editor do Cours de Dessin, que lhe ofereceu um exemplar da obra. De qualquer modo, quando olhamos com atenção, percebemos que há diferenças subtis entre a versão do desenho, o modelo que se vê na fotografia de Folsom e a versão moderna de Lorenzi. O que aponta para um outro gesso que pode ser a versão perdida do artesão italiano. Também a imagem nos suscita algumas dúvidas. Trata-se de um negativo em cianotipia, o que é algo muito pouco usual. A cianotipia é um processo de impressão utilizado para produzir imagens positivas. A matriz, será um negativo o mais transparente possível. Este aparecimento do negativo como resultado, se é o caso, terá sido feito intencionalmente com o objetivo de produzir uma imagem totalmente afastada da representação tradicional fotográfica, como se nos revelasse o outro lado da vida, o que vai ao encontro do sentido do objeto fotografado.
1 ver, por exemplo, Aurélien (1947) de Louis Aragon, o conjunto de fotografias que Aragon pede mais tarde a Man Ray para uma versão ilustrada da obra (1966) e a aparição do molde de gesso no La Mariée était en noir, de François Truffaut (1968).
2 Os modelos em gesso são uma das três principais técnicas de reprodução que se desenvolveram na Renascença, a par da gravura e da imprensa. A sua utilização ia desde a utilização como modelo para as aulas de desenho ao fornecimento de cópias de obras de arte escultóricas a quem não tinha a possibilidade de colecionar originais.
3 Rilke chega a Paris em 1902 e instala-se perto da Rue Racine pelo que o atelier não lhe era desconhecido. Entre 1904 e 1906 trabalha como secretário pessoal de Rodin e, a caminho do atelier do seu atelier em Meudon, passava por Lorenzi todos os dias.