Número 42

10 de Agosto de 2024

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO

SLA/LS/VIS/EXP-C016-010
 


Não é comum encontrar representações do corpo em Lazar Slavick. Por regra, a presença humana está ligada a fotografias de circunstância em que aparecem alguns amigos ou desconhecidos ou ainda transeuntes ocasionais em cenas que regista nas cidades por onde vai passando. Existem alguns nus, nada de extraordinário e pouco mais. Por vezes aparecem alguns fragmentos que fazem lembrar registos para serem utilizados como modelos para artistas, meros estudos de posição e luz e um ou outro corpo, geralmente em posição não identificável, que parecem ser estudos para composições de carácter pictoralista, mas com clara influência do romantismo alemão (o que é expectável encontrar em Slavick). Mais raro ainda (na verdade inexistentes até agora), são fotografias do próprio Slavick. Há referências a retratos nos seus cadernos, feitos por amigos e também a alguns autorretratos que terá realizado. Até agora, ainda nenhum foi encontrado. Tendo em conta a extensão do arquivo e o descrito nas suas notas, é provável que ainda se venha a descobrir um núcleo importante respeitante a esta prática. Contudo, poderemos estar perante um exemplar de uma fotografia de parte do corpo de Slavick. Segundo uma nota manuscrita no verso da fotografia, teria sido obtida com a ajuda de K.1  “Preparei tudo com cuidado; a luz era pouca, calculei o tempo de exposição e pedi a K. que tratasse da exposição. Não era a primeira vez que olhava para o meu pé, pela manhã, e brincava com a luz que entrava rasante pela janela do meu quarto. A ideia era conseguir apanhar uma parte do corpo a sair para a luz. Como a emulsão era lenta, tive de ficar imóvel durante algum tempo. Senti-me fossilizar.” 2 É quase certo que se trate desta fotografia. A coincidência da indicação manuscrita e a descrição que tem no seu diário, deixam pouca margem para dúvida. Era normal, com referimos, a produção de imagens de fragmentos do corpo (muitos provavelmente do seu assistente), mas esta é a primeira vez que vemos a associação de uma imagem do corpo a Slavick. É interessante notar esta apropriação do corpo à imagem, num trabalho de autorrepresentação que se distingue quer do autorretrato quer da representação de um corpo qualquer. É uma experiência que ele tem com frequência (a acreditar no que relata no diário) e quer passá-la a imagem. Não a de um corpo outro que ele observa, mas do seu próprio corpo a experienciar a primeira luz da manhã. A identidade aqui pouco lhe interessa. O importante é a passagem de uma experiência de carácter íntimo para a matéria fotográfica. E esta relação direta entre a experiência sensorial e a matéria fotográfica, está em linha com a atenção que dava a esta capacidade de transposição material do mundo físico para o mundo da imagem. Aqui reside, em parte, a modernidade de Slavick, numa época em que poucos se interessavam por este lado ontológico da fotografia. Desta imagem, encontramos também o negativo, em papel, que foi encerado para aumentar a transparência. A impressão positiva que apresentamos foi produzida em goma bicromatada e existem algumas variações com tentativa de introdução de cor, em tons de acastanho avermelhado, por vezes aplicados localmente, numa tentativa de diferenciar a cor da pele. No negativo original podemos ver que o resto da perna está presente, mas na passagem a positivo, escolheu esconder o resto do corpo e deixar o fragmento ser isso mesmo: um fragmento abstrato, quase incorpóreo, que parece formar-se pela luz num ponto preciso do espaço. Não há um corte rigoroso do corpo no enquadramento. O que se vê, dá-se a ver unicamente através da plasticidade da matéria fotográfica. Esta é uma prova de teste e não sabemos se outras mais definitivas foram produzidas. O próprio tema sugere que não andaria à procura de uma imagem definitiva, estabilizada. Parece tudo fazer parte do habitual caminho experimental que a sua fotografia segue, como podemos ver nas obras que têm sido apresentadas nesta série de notas. O processo aparece sempre como o ponto mais importante do seu trabalho.


1 K. deve referir-se, muito provavelmente, a um certo jovem Karl (?) que foi seu assistente em Praga durante alguns anos (sobretudo durante os finais dos anos 90 de oitocentos). Não temos muitas informações sobre ele, a não ser que para além de ajudar Slavick no laboratório de fotografia, tinha inclinação para a escrita, profissão que terá seguido (segundo notas posteriores de Slavick)

2 SLA/LS/MISC/N09