Número 6

12 de Junho de 2021

NOTAS DO ARQUIVO

Notas do Arquivo

FRANCISCO FEIO

SLA/LS/VIS/EXP-C002-F12


Com esta nota regressamos às primeiras experiências de Lazar Slavick, que nos permitem perceber um pouco do espírito inovador e moderno de um autor que acabou por guardar para si quase toda a sua produção, longe da visibilidade, privilegiando o seu núcleo íntimo onde iam circulando a maioria das suas obras. Certo que iam sendo mostradas (há notícias públicas disso), mas a maioria acabou por ficar fora dos circuitos de distribuição onde andavam as obras de todos aqueles com quem se ia cruzando ao longo da vida. Era uma escolha pessoal, preferindo o experimentalismo e a reflexão, mantendo os prazeres da descoberta visual e que ia partilhando entusiasticamente com os que o acompanhavam.
A imagem que ilustra esta nota é, em tudo, emblemática não só do seu trabalho, dos seus processos, mas do próprio Slavick. Trata-se de uma cianotipia, técnica que utilizou frequentemente no início dos anos 90 de oitocentos e até aqui não há nada de novo (1). Para além da questão óbvia das características cromáticas que o seu nome indica, uma das coisas que a técnica permite é a versatilidade na escolha de papéis que podem ser utilizados, tal como outras técnicas que têm por base o papel como suporte. Basta que a superfície receba a química, que fica pronta a ser utilizada. É aqui que surge a primeira surpresa deste trabalho. Olhando com atenção, mesmo tendo em conta a degradação geral do suporte, apercebemo-nos que por baixo da imagem fotográfica há um desenho relativamente identificável e que nos revela a sua origem. A base utilizada não é um papel qualquer, de desenho, aguarela ou escrita como era habitual, mas um exemplar de uma gravura produzida para a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. Trata-se de uma gravura retirada do volume I referente à agricultura (1762). O desenho será de Louis-Jacques Goussier (1722 – 1799) e a gravura de Defehrt ou De Fehrt (1723 – 1774)(2).
Na pintura, o pintar por cima, seja de obras do próprio ou de outrem é comum. Mesmo o desenho pode ser apagado ou coberto com uma base e reutilizado o suporte ainda que não com as mesmas características. Na gravura, em determinadas técnicas, as chapas de cobre das matrizes poderiam ser polidas de modo a apagar a gravação prévia de modo a serem reutilizadas e as pedras da litografia são facilmente recicladas. Na fotografia o procedimento era de todo incomum, uma vez que tecnicamente não se pode apagar a imagem e recomeçar. É claro que já se sobrepunham imagens juntado dois negativos (apesar de não ser prática comum). Apenas os processos baseados em química impregnada no suporte o permitem com relativa facilidade. Era um facto conhecido desde o início da calotipia que as marcas do papel apareciam na imagem, fossem as linhas do papel de escrita, ou marcas de água, pentimenti inesperados que se tornavam visíveis na impressão final. Talvez a partir desta observação tenha Slavick pensado em relacionar essas imagens prévias com as suas fotografias e a cianotipia surgiu como o processo mais simples de o tentar. Surge assim uma longa série experimental de que faz parte de um conjunto vasto de trabalhos onde se inclui uma série preparada especialmente para ser utilizada como ilustração de uma edição do Candide ou l’Optimisme de Voltaire e que, por razões desconhecidas, nunca chegou a ver a luz do dia (3). É aliás curioso notar que a escolha das imagens não é feita totalmente ao acaso. Temos uma imagem de um jardim impressa em cima de uma gravura relacionada com atividades agrícolas onde cabia a jardinagem. No caso presente a gravura ilustra uma produção de índigo, provavelmente nas Antilhas. A ligação com as tonalidades da cianotipia é evidente, surgindo assim a imagem subjacente como a estrutura que constrói a cor da prova final.
Outro facto interessante é a proveniência das gravuras que chegam às mãos de Slavick através de uma relação de amizade entre o pai e Bedřich Silva-Tarouca (1816 – 1881), colecionador de arte e que lhe tinha oferecido alguns exemplares de gravuras que tinha na família e que teriam vindo diretamente de um atelier de gravura parisiense ao tempo da produção da Encyclopédie, na sua maioria provas de estado sem qualquer valor. Slavick prolonga esta relação de amizade familiar com um sobrinho do colecionador, Arnošt Emanuel Silva-Tarouca (1860 – 1936) presidente honorário da Exposição Etnográfica de Praga em 1895 e que oferecerá o seu palácio para albergar as coleções do Museu Checoslovaco de Etnografia (4).


(1) Apesar de se pensar que terá sido das primeiras técnicas que utilizou e que algumas imagens poderão ser datadas com segurança do início de 80, há pouca informação segura que suporte esta ideia.
(2) Poderá ser uma prova refeita por Robert Bénard (1734-1777), o mais prolífico gravador a trabalhar nesta obra monumental, após um conflito que opôs Diderot a Defehrt que o acusa de ter perdido uma quantidade apreciável de matrizes de gravura e que teriam de ser refeitas.
(3) Alguns trabalhos mais tardios relacionados com uma outra tentativa de edição da mesma obra, mas utilizando técnicas completamente diferentes, foram mostrados em Coimbra nas vacarias da Agrária, em 2013, na exposição Cândido ou o optimismo, organizada pelo coletivo pescada nº5.
(4) Bedřich Silva-Tarouca é bisneto de Emanuel Silva-Tarouca (1691-1771), arquiteto português e homem influente na corte austríaca, conselheiro e confidente da arquiduquesa Maria Teresa, filha de Carlos VI, a quem tinha prometido olhar pela filha.