Começar com uma breve síntese que introduza o tema
Debaixo do fogo brando de uma crítica sistemática o modelo biomédico aguenta-se. Tem a seu favor a imensa maioria dos médicos e prestadores de cuidados, os doentes, a hierarquia social, as escolas médicas conservadoras e negligentes, a filosofia tradicional onde o modelo dualista parece transmitir-se naturalmente e o Erro de Descartes nem sequer é percebido. O modelo biomédico contaminou os cuidados de saúde e é responsabilizado pelos seus principais defeitos conceptuais: alienação, institucionalização e especialização. Entre as alternativas ao modelo biomédico surge a Medicina narrativa. É uma ambiciosa tentativa de ultrapassar os defeitos do modelo tradicional. Exige que o médico encare a consulta como um encontro entre um narrador e um leitor e que desse encontro surja a emoção e a intersubjetividade que tornem os cuidados de saúde mais eficazes, democráticos e justos.
Pausar para contar uma estória
Num ano já longínquo do século passado, num país atrasado da Europa ocidental, um rapaz acabou os estudos secundários e não sabia que fazer. A única hipótese parecia ser continuar a estudar. Se não o fizesse interrompia a sua trajetória de classe que levava os pequeno-burgueses da geração do pós guerra a fazer um curso superior, a ingressar na Universidade, o que só excecionalmente acontecera na geração dos seus pais. O rapaz, de 17 anos, não tinha a mínima ideia do que queria fazer.
— Talvez ser economista.
O amigo do pai, que era mentor da juventude, disse que os economistas estavam todos presos ou a trabalhar para os monopólios. Era complicado.
O rapaz atreveu-se : — Jornalista…
Que não havia escola superior de jornalismo. Era mais complicado.
Outro amigo dos pais, que ganhava a vida a dar explicações de Inglês e alemão e a traduzir dramaturgos irlandeses, disse-lhe então:
— Vai para Medicina. Podes fazer o que quiseres, sendo médico. Já leste o Fernando Namora? Retalhos da Vida de um médico? Ou este que acaba de ser publicado. (Diálogo em Setembro).
Não lera, mas não era isso o que queria do seu futuro. Uma vida aos retalhos, retrovertida em neo-realismo.
— Podes trabalhar e escrever. Escrever o que te apetece. E ler. Sobretudo ler. Parece que os gajos trabalham com prazer, as consultas com os doentes podem ser vistas como encontros, cheios de possibilidades literárias. Detêm e gerem bibliotecas a sério, estão na origem de importantes bibliotecas públicas. Pensa nisso.
E mais adiante, passeando à noite na Portagem, sinal da sua adultez, o germanista de novo: — O Júlio Dinis. Ainda leste? Uma Família Inglesa? Serões de Província, A Morgadinha dos Canaviais. Tu já leste muito para a tua idade. Pois olha, o Júlio Dinis era o dr. Gomes Coelho, professor da Escola Médica do Porto e seu bibliotecário. Morreu com trinta anos (trinta e um). Vê lá tu o que ele escreveu. Gostaste da Jenny? Quem não gostou ? Inspirou-se numa tia (prima), Cássia, acho eu. (Rita de Cássia Pinto Coelho).
— E se não quiseres escrever, pintas. Abel Salazar, o teu pai ainda conheceu. Professor, médico, pintor, artista plástico, leitor.
— E sabes que Checov era médico. (Anton Checov: A Medicina é a minha mulher e a Literatura a minha amante). E William Carlos William. E Franz Fanon. E Victor Ségalen.
Ou duas
Uns anos depois disto, no fim dos anos 70 do século XX, um jovem chamado Rui Pato, filho de um jornalista (Rocha Pato) e que se celebrizara ao acompanhar à guitarra o Zeca Afonso, ( aos 16 anos acompanhou à guitarra José Afonso na gravação de um disco lendário, Baladas de Coimbra, que continha a canção Vampiros) escolheu a especialidade de Pneumologia (antes chamada de Pneumotisiologia) e o Serviço do Hospital dos Covões (Hospital da Colónia Portuguesa do Brasil, Hospital Geral do Centro Hospitalar de Coimbra, CHC). Apresentou-se ao diretor (Abreu Barreto). Soube o horário, a tira de camas pela qual seria responsável, as consultas externas, o dia de Urgência. No final da entrevista pediu ao diretor que lhe indicasse um livro de referência, um tratado atualizado de Doenças pulmonares.
— A Montanha Mágica— respondeu ele.
E o Rui passou todo o primeiro estágio a estudar Thomas Mann.
( A Montanha Mágica, de Thomas Mann, 1924. Edição portuguesa da Relógio D’Água de 2020, 868 pgs; a edição da D. Quixote é de 2006)
Algumas notas avulsas:
Na introdução ao livro The Principles and Practice of Narrative Medicine, edição da Oxford University Press, 2016, Rita Charon escreve que “os médicos, académicos e escritores criativos autores deste livro (aquele Principles, título roubado ao livro de Osler de 1892 que estabeleceu as bases do que se chamaria a Medicina Interna) acreditam que o domínio das competências narrativas influencia os cuidados de saúde através da melhoria da precisão e do âmbito que os clínicos passam a ter dos seus pacientes e da qualidade da parceria que são capazes de estabelecer.“
E mais à frente enumera os alicerces da Medicina Narrativa: a Teoria Literária, a Narratologia, a Filosofia continental (em oposição à Filosofia Analítica), a Teoria estética, os Estudos culturais.
Bahtkin, Mikhail( 1895-1975): o dialogismo. Teórico russo que acreditava na relação intima entre o autor e o seu contexto e o leitor. Cada um influenciando o outro e o conjunto influenciando e ganhando significados no contexto social e politico. Bahtkin foi preso e deportado para o Kazakistão soviético, onde continuou a ensinar e a influenciar os adeptos da teoria literária, embora a sua influência se tenha produzido sobretudo no Ocidente e após os anos 60.
Dostoievsky (Cadernos do Subterrâneo) : Nesta obra, considerada uma das obras seminais do século XIX, o autor introduz a figura do unreliable narrator. O que mente intencionalmente, “lança o isco e roda incessantemente em torno de nós, malicioso”.
A análise que Bahktin faz do “monólogo “ de Dostoievsky é a seguinte: “A atitude do herói relativamente a si próprio é inseparável da atitude relativamente a outro e de outro relativamente a si.” A auto consciência, consciência de Si mesmo, do Self, é inseparável do pano de fundo da consciência dos outros de si mesmo. E de forças estruturais- como a pobreza, o acesso a comida, o modo como viveu a cultura paternalista dominante.
Felski, Ruth: enfatizou o papel de textos literários para grupos que foram silenciados ou privados de direitos. Que assim se podem reconhecer, identificar, reivindicar uma identidade, uma genealogia. E ser reconhecidos e apreciados.
Colm Tóibín: o conto One Minus One é utilizado nos cursos de Medicina Narrativa.
(cf. https://www.newyorker.com/magazine/2007/05/07/one-minus-one. The New Yorker, April 30, 2007)
Butler, Judith: não existe um self absolutamente autónomo. Como presumir que conhecemos completamente os nossos desejos e aspirações? Crítica do Sujeito (autónomo)- Michel Foucault, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Julia Kristeva questionam o modelo do sujeito do iluminismo: racional, objectivo, auto determinado que vigia o mundo à distância.
— Posso oferecer uma narrativa adequada de mim próprio se, de alguma forma, sou formado pelo meu ser social, o contexto da minha existência ou pela linguagem recebida através da qual construo a minha narrativa? —pergunta Butler.
Esta opacidade do eu obriga a humildade e a vulnerabilidade.
A identidade contingente.
Quem é este Eu que fala? Responder a esta pergunta obriga a recorrer à Filosofia e a textos literários onde estas questões são tratadas de forma a que as pessoas envolvidas no encontro clínico, leitores e narradores à vez, as podem também perceber, recontar, alargar, num processo criativo e curativo ou terapêutico.
Nem sempre se pode curar mas pode-se sempre cuidar.
Elie Wiesel: Não é porque eu não sou capaz de explicar que tu não queres perceber; é porque tu não queres perceber que eu não posso explicar.
Pensar e escrever sobre a natureza co-construída e dialógica das trocas humanas, tal como é representada nos textos literários, torna os leitores mais alerta relativamente aos seus efeitos sobre os outros.
Que estórias são ouvidas em hospitais e escolas médicas? E caladas ?
Close reading: à medida que relemos, à segunda e terceira leitura, acrescentamos dados sobre a oficina, as escolhas dos morfemas e da sintaxe, da semântica, da informação fornecida por outros textos com este relacionados. A Medicina Narrativa usa a close reading de textos literários de autores célebres, não necessariamente sobre a doença e os seus contextos, e ainda de textos produzidos por doentes e médicos na relação clínica, ou por técnicos de saúde em cursos.
Lawrence Ferlinghetti : Um poema é a menor distância entre duas pessoas.
Alma
O que faço dentro do corpo deste velho?
Sinto que sou as vísceras de uma lagosta,
Tudo pensamento, e tudo digestão, e pornográfica
Investigação, e circular, e perplexidade
E medo, evitar as dificuldades, acreditar em quê,
Deus sabe, vagas memórias de amigos, e o que
Eles disseram ontem à noite, e ver, fora de mim,
daqui de dentro de mim próprio, as minhas garras a acenar
Inconsequentes, vacilantes, e as minhas antenas
Sobrenaturais, a tremer, com a sua incrível
E inquietante sensibilidade às ameaças;
E tenho noção e estou envergonhado pela minha forma de estar
De circular, e da minha carapaça protetora.
Para onde é que foi aquela que eu amava, enquanto
Esta água fria do mar passa nas minhas costas?
—David Ferry
(traduzido por médicos)
A Medicina Narrativa resulta da compreensão da dos laços entre narratividade e identidade. Os nossos princípios e práticas de intersubjectividade (percepção partilhada da realidade entre duas ou mais pessoas) e de relacionalidade (a teoria que postula que só existimos em relação), a nossa escolha de Close reading como assinatura, o nosso enfase na criatividade nos cuidados de saúde, os nossos métodos de ensino em colaboração, e a nossa prática clínica narrativa tudo revela o nosso empenho em viver à luz da reciprocidade entre identidade/ narratividade (ser capaz de inspirar uma resposta narrativa).
Luíza Neto Jorge: o poema ajuda a cair. A Medicina narrativa acredita que lido, relido e re-relido entre o médico e o doente, o poema também ajude a levantar-se.