I
Cinco corpos ocupam o espaço vazio de uma sala escura.1 Movem-se em linha, lado a lado, com um ombro a sentir o seguinte e o semblante a gerir um horizonte invisível, prostrado algures na linha média da altura dos olhares (que não se encontram). Os cinco corpos diferem nos vários parâmetros de reconhecimento de uma criatura humana: tamanho, beleza, sexo, género (e todas as outras furtivas e infinitas características identificáveis na penumbra recortada pelos holofotes) percorrem a gama de uma definição instável, entrecortada pelos movimentos e troca de posições dos corpos, que se alteram consoante a relação destes com os outros (e com o espaço). Os cinco corpos, na medida dos seus avanços e recuos e das tensões coreografadas, ora dilatam ao ponto da obsessão dos músculos (e outros tecidos), ora diminuem até ao desaparecimento dos actores perante o padrão da cinesia, conseguindo a proeza de celebrar o indivíduo na vasta constelação das repetições exaustivas (corpos, música, desejo) próprias da rave. Cada um é ele mesmo e o seu parceiro (como termo de comparação) e cada um explora livremente a regra que os une numa luta comum. Estes cinco corpos, que ocupam o espaço vazio desta sala escura, reclamam muito mais do que o direito à liberdade dos seus movimentos. Quando reconstroem o espaço da pista de dança (queer) a partir da intuição de uma linguagem comum (pernas, braços, mãos, olhos), não estão apenas a reivindicar a segurança, o conforto e a liberdade dos seus anseios, mas sobretudo a mostrar que esse movimento só faz sentido como força influente (a partir) do conjunto.
II
Duas pessoas solitárias encontram-se, finalmente, na esplanada de um café que faz a esquina de um cruzamento de duas ruas. Depois dos sorrisos tímidos pousam os seus cadernos na mesa. Cada um deles irá rabiscar no ar, com palavras igualmente tímidas (ainda a procurarem o seu próprio sentido), as motivações, as dúvidas e os planos que apontam como solução para os dias futuros. Enquanto namoram as ideias, naquela convergência de ruas, a cidade vai passando com todos os seus protagonistas, imbuída num espírito de salvação (bellum omnium contra omnes) típico de sociedades que, no final das contas, não sabem para que servem. Com o ginásio e a terapia a intercalarem os finais dos dias de trabalho, acordam e adormecem numa obsessão em frente ao espelho, acreditando terem, eles mesmos, a cura para o doença que os tomou. Isto, porque a cidade não lhes diz que as ruas só deveriam servir para unir as praças, que tudo o resto é violência decorada a néon, e que, no final, acabarão todos por se espetar em becos, entrepostos e lugares de garagem. Mas, de alguma forma, a cidade sobreviverá a mais esta tragédia que transformou sonhos em neuroses, e os apartou das discussões à mesa, estando agora apenas entregues a especialistas. Então, ela desenha uma linha que une as páginas abertas dos dois cadernos e descobrem (os dois) a subtil dialética que os salvará do sucesso em nome individual.
III
Saindo do trabalho já de noite, depois do cancelamento do seu comboio de regresso, insultou o estrangeiro que o levou a casa, fechou o portão do prédio com estrondo e, tropeçando já no seu próprio cansaço, refastelando-se no seu sofá encardido, adormeceu em frente à televisão, indagando: e o direito à propriedade?
1 UNTITLED (Holding Horizon) de Alex Baczynski-Jenkins.