Número 25

24 de Setembro de 2022

MERCADO DE FUTUROS​

O acumulador de chaves

HÉLIO BARATA

Fulano de Tal, divorciado, com os filhos já entregues à tortura do mercado de trabalho, esperava apenas reformar-se da repartição para poder dedicar-se ao usufruto de bens culturais. Tinha até um plano do qual constavam as horas que semanalmente dedicaria a cada um deles de forma passiva — cinema, teatro, concertos, exposições, dança, novo circo — e ativa — leitura, viagens e também pintura, na qual tencionava iniciar-se ou ser iniciado, conforme a vida lhe corresse. Contou os dias que faltavam para a reforma com um sorriso, sempre amável com os colegas passivo-agressivos e as chefias ausentes, tanto as emprateleiradas como as efetivas. Até aos últimos dias atrás do balcão, do qual nunca ascendera, atendeu com bonomia todos os utentes, independentemente do estado em que lhe chegavam. E, se esse estado não soía ser bom, Fulano de Tal, com a calma e a prestabilidade que toda a gente lhe reconhecia, fazia com que as pessoas saíssem da repartição mais apaziguadas, mesmo que igualmente falidas. No último dia no emprego, os colegas fizeram-lhe uma festa surpresa, um jantar num restaurante de luxo cuja conta foi paga com o dinheiro que carinhosamente desviaram da compra de material informático para o serviço. Sem que ele soubesse, como poderia saber, porque jamais aceitaria uma solução de financiamento deste tipo.

O que Fulano não previra era que as atividades que escolhera para ocupar o tempo liberto o enervassem. Sempre tinha gostado de todas elas, em particular do teatro, e era frequente ouvi-lo a deplorar a falta de azo para ver mais peças, mais companhias, mais salas. Mas, agora que o podia fazer sem outras restrições senão as financeiras, as idas ao teatro provocavam-lhe inquietação, até algum desespero. Começou a reparar em todos os pequenos defeitos, da encenação aos figurinos, que antes lhe pareciam irrelevantes ou passavam despercebidas. O mesmo se sucedia com as restantes áreas da atividade cultural. O pouco cuidado na edição dos livros e nas traduções, os erros de continuidade nos filmes, as expressões faciais imbecis dos bailarinos, as canções cantadas de qualquer maneira, tudo isto e todo o resto o irritava ao ponto de, nalgumas ocasiões, perder a compostura. Imaginou que talvez fosse a falta de uma companhia emocionalmente significativa, algo que não tinha desde o divórcio ruinoso quase cinco anos antes. Tentou os serviços digitais de emparelhamento de que teve conhecimento, mas todos os encontros que marcou correram mal, por falta de comparência da outra parte ou de não correspondência entre a imagem publicitada e a realidade.

A insídia de um desespero de baixa intensidade instalou-se e Fulano de Tal foi substituindo o consumo de cultura por longos períodos de inatividade que não lhe pioravam o desassossego. Mas também não o melhoravam, muito menos suprimiam. Os pensamentos acerca da estreita relação entre a mortalidade e o sentido da vida tornaram-se dominantes nas suas horas de navegação em busca por algum tipo de satisfação eletrónica. E foi num desses passeios virtuais que deparou com um anúncio do Asilo de Loucos de Amieiro do Mato, S.A. Procuravam, para um estudo internacional a ser publicado numa revista de alto fator de impacto, pessoas de qualquer idade ou sexo que tivessem na sua posse uma grande quantidade de chaves cuja origem desconhecessem. A primeira impressão que isto lhe causou foi a de uma pequena ferida interior a sangrar, mas depressa viu ali uma oportunidade para fazer algo de útil, contribuir para o progresso da ciência. O que teria isso que ver com as chaves, não conseguia antever, mas a realidade é que ainda o ano anterior tinha comprado uma cómoda especificamente para o efeito de guardar os quilos de chaves que acumulara ao longo da vida e cuja origem se tinha perdido nas circunvoluções cerebrais.

Mas, em vez de um laboratório, teve direito a uma estagiária em sua casa para realizar um questionário enfadonho, constituído por uma bateria de perguntas e escalas de caracterização e, por fim, algumas perguntas sobre as chaves propriamente ditas. Se tinha alguma ideia de onde poderiam elas ser provenientes, por que razão as guardava, porque nunca as deitara fora. Fulano não sabia responder a nenhuma delas. Ter-se-ia apropriado indevidamente de chaves de locais que já não habitava, usava ou frequentava? Haveria pessoas a viver em casas que pensavam seguras por não saberem que ele, logo ele, detinha ilegalmente os meios de entrada? Teria imposto despesas desnecessárias na troca de fechaduras de cacifos, contadores e armários? Começou por dizer que ficava com as chaves como recordação, mas uma vez que não se recordava de quê, calou-se antes de acabar a frase. A estagiária, impávida e inexpressiva, deixava-o embrulhar-se nas suas próprias justificações: motivos sentimentais, distração, falta de memória, nada que considerasse convincente. Após a saída da estagiária, caiu numa crise existencial que acabou por evoluir para uma depressão clínica. Passados dois meses, deu entrada no Asilo de Loucos de Amieiro do Mato, S.A. que, desde que se inscrevera no estudo, o bombardeava com newsletters diárias cuja subscrição nunca conseguiu cancelar. O artigo nunca foi publicado.