Número 3

1 de Maio de 2021

PAIS E MÃES PARA FILHAS E FILHOS

O closet

E. PICHÓN R.


Closet [Inglês] s. m.  Espaço ou divisão da casa destinado a guardar, entre outras coisas, peças do vestuário e o calçado. Armário, roupeiro, guarda-roupa, guarda-vestidos.


— Bom dia, dr. Pichón. (jovial) — Já percebi o tema que escolheu para o nosso programa de hoje. E posso dizer-lhe que a produção esteve a ler o seu prodigioso curriculum e quis enfatizar que o doutor pode…enfim, falar do que quiser.
— Bom dia, Madalena. É mesmo essa a vossa linha editorial, segundo creio.  Pois falemos um pouco do closet. O espaço onde se guarda a roupa e onde pessoas da casa, pelo menos as pessoas adultas da casa, se vestem. Um espaço de maior ou menor dimensão, mas geralmente pequeno, muitas vezes sem luz exterior, anexo ao quarto de dormir.


— Gosta do termo closet? (interrompendo, animada)
— Precisamente. Gosto muito. Não sei exatamente como surgiu. O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa diz que a palavra é grafada no séc. XIV.  No início do séc. XVII, algumas casas, na Europa, tinham um quarto privado, destinado a encontros discretos, à oração, à leitura ou à escrita, ou simplesmente à contemplação.
A origem da palavra, do latim clausus, part.pass. de claudere, significa exatamente fechado. Em francês a palavra clos é muito próxima. Closet seria um diminutivo de clos. E clausura, uma palavra etimologicamente próxima, em português, remete para o encerramento monástico, para a oração. (1)


Closet seria assim um espaço fechado à circulação habitual da casa?
— Sim, reservado, onde não é habitual que as crianças brinquem ou a que as visitas acedam.


— Interessante, mas hoje, closet soa-me também a close. (divertida)
— Fechado e próximo, certamente. O contrário de público.


— Fechado, próximo e pequeno (parecendo entusiasmada, inicialmente. Depois mudando de tom para um registo sério). Mas folheando as revistas de moda e de design, …não vou falar das de arquitetura, o que encontramos é geralmente uma demonstração exibicionista através da qual a burguesia endinheirada destrói completamente estas metáforas que está certamente a sugerir.
— Quase sempre, sim. Mas tente esquecer essa ostentação. Há hoje um número considerável de habitações, mesmo pequenos apartamentos, onde o closet tem lugar.  Pense num espaço reservado, um espelho, um tamborete, com prateleiras e gavetas até ao teto onde estão, limpas e dispostas segundo uma determinada ordenação, as roupas que se destinam ao corpo. Que vão colar-se ao corpo e sair para a exposição pessoal, nos lugares de comércio e de trabalho.


— Outra duplicidade, estou a ver. (encorajante)
— Sim, um lugar de privacidade, onde se guardam peças de valor (não é por acaso que, em caso de assalto, os assaltantes escolhem o closet como primeira divisão a ser devassada) …


— Que horror, dr. Pichón, do que havia de se lembrar!
— O lugar onde se guarda o que é privado, mas que eventualmente pode ser mostrado. Ou apenas admirado, no espelho, e em seguida readquirir o seu valor reservado.


— Por exemplo?
— Desde logo o corpo. O corpo nu, com as marcas de nascimento, os sinais particulares, a imperfeição congénita, a identidade. E depois o corpo onde se inscreve o tempo. Lentamente, primeiro sem se notar, indelével depois, subitamente indisfarçável. E a face, sem a interação social.


— A face sem expressão. É horrível, dr. Pichón. Irreconhecível. Um fotógrafo meu amigo procurava pessoas na rua, que convidava para o estúdio e a quem pedia que posassem longamente, procurando não pensar em nada. O resultado foi um álbum de faces congeladas, com a musculatura descaída, assimétricas. Felizmente não permanecemos no closet tanto tempo. (risos)
— Vincent Delerme…o cantor francês…conhece?


— Ainda não.
— Vincent Delerme tem uma canção que se chama, salvo erro, “O Inimigo no Espelho”, onde diz (trauteando)

L’ennemi dans la glace
Dont le regard me glace
. (2)


— Vou procurar, prometo (risos). Mas essa imagem é muito forte, de facto. Surpreendermos um estranho, que pode ser um inimigo, num lugar de reserva. E percebermos que nos defrontamos com uma imagem atualizada de nós próprios. (pensativa). Que não coincide com a imagem idealizada.
— Deixamos no closet os nossos segredos. Alguns de nós deixam lá a sua orientação sexual. Lembre-se da expressão “não saiu do armário”, a tradução do “in the closet” que designa quem não revela a sua orientação sexual ou que esconde a sua identidade de género.


— Antes do doutor começar a falar disso estava a lembrar-me do “skeletons in the closet”, os nossos “esqueletos no armário”. Que quer dizer praticamente a mesma coisa, não acha? Que outros esqueletos havíamos de esconder?
— Claro. É quase sempre algo que não se inscreve nos modelos típicos da sexualidade. Algo historicamente vergonhoso, visto pela maioria como uma fragilidade, que não se pode ou se quer revelar. To out someone, forçar alguém a sair do armário, é o que geralmente exigem aos gays que estão escondidos, que estão fechados no seu segredo, assumindo posições públicas contrárias à diversidade.


— Que têm a sua sexualidade no closet. (pausa) Sempre lhe digo, é melhor tê-la no closet, onde há algum espaço e com jeito se pode fazer alguma coisa, que no armário. Tão abafado. (pronuncia esta última frase com ênfase forçada).
—  E então os esqueletos! A Madalena já viu o que é a vida de um esqueleto no armário? A claustrofobia. O convívio com cheiros indesejados que o ar parado não permite renovar. Uma porta que não se abre.


— Para mim o armário foi sempre o sítio onde os amantes se escondiam. Esqueleto no armário era sempre o esqueleto do amante, coitadinho. De um rapaz que eu esquecera e aí ficara a definhar, entre a naftalina e a alfazema.
— O pior, Madalena, não é ter o esqueleto de um namorado esquecido no armário. O pior é se esse esqueleto é o nosso. O esqueleto da nossa sexualidade escondida, não revelada, aprisionada.


— Ui!
— É verdade. Chama-se a isso sexualidade egodistónica. Uma sexualidade que não é concordante com a orientação.


— Deve ser terrível, doutor. É como não ter a roupa certa. Eu tive durante muito tempo um closet egodistónico. Mas não era por ser o lugar de uma sexualidade reprimida.
— Ainda bem, Madalena. — (paternal). Mas devo chamar a sua atenção para o facto de estarmos em direto. Nada a obriga, enquanto entrevistadora, a fazer confissões. Eu estou a usar o pronome nós para realçar que falo do que pode acontecer a qualquer pessoa. Para não criar uma falsa separação entre quem num momento da sua vida pode sofrer ou ter sofrido e as pessoas restantes, felizes contempladas com a norma binária, alegres cúmplices.


— Eu percebi, dr. Pichón. Não se assuste. Bem pouco valiosa era a confissão que me aprestava a fazer-lhe. No meu closet eu não respirava a inadequação dos meus desejos. Era a roupa que me cercava que me parecia totalmente inadequada. Como se tivesse sido outra a escolher. Como se a mulher out que a comprava fosse outra, diferente da que agora ali se vestia, diante do espelho.
— Que bonito, o que está a contar. A Madalena teve, então, uma egodistonia vestimentária?


— Qualquer coisa assim. Até que um dia percebi que não me vestia para as pessoas certas. Que ao escolher aquelas roupas tentava ocultar a pessoa que afinal era. Esconder-me lá fora, sem, no entanto, me revelar cá dentro. Passar, sem dar nas vistas. Conformada, pouco ambiciosa.
— Voltando à face. Passa-se o mesmo com a face. Éluard escreveu:

J’ai eu longtemps un visage inutile,
Mais maintenaint
J’ai un visage pour etre aimé (3)


Tivemos muito tempo uma cara no armário. Mas um dia, a nossa cara merece ser amada.

— A cara egodistónica com que nascemos. E que maquilhamos no espelho do closet?
— O closet, falo dos espaços pequenos e modestos, é o lugar onde nos escondemos para depois nos revelarmos.


— Dr. Pichón, hoje não temos mais tempo. — (com fingida coragem). Sinto que lhe devo algum agradecimento por me ter feito sair do armário. Foi assim que aconteceu com a Pizarnik?
— Conheci Alejandra quando ela tinha vinte e dois anos, no bar El Temple em Buenos Aires. Ela vinha com o  Bajarlia, o professor da Escola de Jornalistas. Foi ele que nos apresentou. Ela andava a escrever o livro que se chamou La Tierra más ajena. Estava comigo o Aldo Pellegrini. O Aldo – ou fui eu? – disse que estávamos a pensar rejuvenescer a revista Osso que tínhamos criado com outros e que gostaríamos de ver os seus poemas para os publicar. (4)


— Que história dr. Pichón ! E a Pizarnik deu-vos os originais?
— Ela leu alguns deles ali mesmo.  Mas estamos mesmo a afastar-nos do tema, Madalena.


— Fica para outra vez, dr. Pichón. Até breve.


1)    In the Closet: A Close Read of the Metaphor, Hannah L. Kushnick  AMA Journal of Ethics , aug 2010
2)    O inimigo no espelho/ cujo olhar me gela
3)    Tive durante muito tempo uma cara inútil./ Mas agora/ tenho uma cara para ser amada
4)    https://lamatriznoticias.com.ar/pizarnik-trayecto-inicial/