Lá fui eu, outra vez, à dentista, fascinar-me com os seus procedimentos. Mentira. Vou sempre em terror. Os sons, a televisão, a conversa. As brocas e demais instrumentos. Há uma parte em que quase adormeço, quando fica tudo um ruído branco. Mas a parte que gosto mais é a da anestesia.
Claro que sabe mal. Mais uma coisa que sabe mal, mas a parte boa é depois não sentir dor (durante).
A anestesia foi um procedimento muito mal-entendido ao longo do tempo. Houve quem dissesse que a dor faz parte de estar saudável e vivo[1]. Idiotas. Como se fosse parte do parto, da moral e do decoro. Eu tive anestesia no parto, e mesmo assim tive dores. As dores contribuíram alguma coisa para a experiência?
O que me disseram foi que quando se está bloqueado pela dor não se vê nem ouve mais nada. Acreditei. Acredito que, para se ser verdadeiramente paciente, convém não se sentir dor.
“Estou a trabalhar com o meu terapeuta para me ajudar com a ansiedade climática”, parodia Greg Kogan[2]. Mau. Aqui já entortou. É que a dor costuma ser importante para avisar de coisas que não estão bem. O ideal é ouvi-la e depois dizer, já te ouvi, vamos tratar disso. Mas trabalhar a ansiedade das alterações climáticas sem tratamento é mais um paliativo do que um aviso.
A dor avisa-nos de que o que fazemos tem consequências. No meu caso, mais um aviso de que não posso comer açúcar. Já está em prática: nada de capitalismo açucarado para mim. Vamos começar a fazer as coisas ainda com mais dureza. Mas dureza não tem de querer dizer dor.
Quem não gostava de anestesias talvez pensasse que nos livra de problemas. Não livra. Digamos que permite viver os problemas de forma mais silenciosa. Para nos livrar dos problemas, precisávamos de transferir as consequências para outro corpo, como o quadro do Dorian Gray.
A anestesia não é um quadro do Dorian Gray.
O meu dente não vai enfeiar nenhuma fotografia.
A minha cárie não foi para nenhum outro lugar.
A minha cárie pulverizou-se.
Pelo contrário, os meus dentes desvitalizados são sarcófagos.
Espero que sejam eficientes a conter o que se passa dentro deles.
Esperemos que nada. Espero escapar impune.
[1] Meyer, R., & Desai, S. P. (2015). Accepting pain over comfort: resistance to the use of anesthesia in the mid-19th century. Journal of anesthesia history, 1(4), 115-121.
[2] https://www.gregkogan.com/cartoons/217/