Mariana Barros Silvestre entrevista o dr. Pichón R. | Temporada 2
— O meu nome é Mariana Silvestre e queria cumprimentar o vasto auditório da Rádio Osso e a si, em especial, dr. Pichón. Sou a jornalista que a Rádio Osso destacou para o entrevistar, nesta segunda série, que agora se inicia.
— Bom dia.
— Para os que só agora nos sintonizam, o dr. Pichón é um distinto médico argentino a viver entre nós há algum tempo. Foi um dos fundadores da psiquiatria latino americana e conheceu a mítica escritora Alejandra Pizarnik. Hoje, o tema que escolheu é o da excecionalidade da vida humana. (Pausa. A voz grave da entrevistadora faz antever a seriedade da conversa que se vai seguir) — Consideramos o direito à vida como uma das questões mais improváveis, não é verdade, dr. Pichón?
— Felizmente.
— E não foi sempre assim desde o início da nossa história?
— Não foi sempre assim. Ou quase nunca. Ainda agora, se lermos sobre a segunda guerra mundial, a guerra de Hitler como diz Tony Judt, vemos facilmente que sob os exércitos de ocupação, a vida humana se desvalorizara consideravelmente. E o mesmo acontece nos grandes conflitos atuais. Médio Oriente, África, Extremo Oriente, América Latina.
— Mas na Europa Ocidental, na atualidade, o direito à vida parece intocável.
— Se nos detivermos um pouco, no entanto… (o dr. Pichón mostra algum domínio da comunicação radiofónica e prossegue com desenvoltura) percebemos imediatamente que esse direito se restringe às pessoas humanas. E em muitos casos, a algumas vidas humanas. Sob Salvini, os barcos de voluntários que procuravam localizar e proteger as vidas de imigrantes no Mediterrâneo, eram apresados e os seus tripulantes levados a tribunal. Os partidos populistas de direita estigmatizam os refugiados. Os Estados Unidos tiveram bases de tortura em território europeu.
— Percebo. Mas o seu ponto de vista, neste programa, é que o direito à vida se devia estender a outras vidas não humanas? (Mariana está pouco à vontade)
— Em quase todo o lado, o direito à vida dos outros animais conscientes é ainda visto como uma excentricidade, mesmo quando existe legislação protetora. O conceito de inteligência e de consciência em outros animais é disputado, mas é cada vez maior o consenso em atribuir alguma forma de consciência, capacidades cognitivas, e mesmo posse de teoria da mente a outros mamíferos, a aves e a polvos, lulas e chocos.
— Teoria da mente! Pode explicar, dr. Pichón?
— O termo Teoria da Mente (cuja abreviatura usual é “ToM”) significa a capacidade de reconhecer e entender pensamentos, desejos e intenções nos outros. É fundamental para dar um sentido ao seu comportamento e, de certa forma, prever o que farão em seguida.
— Uma espécie de “leitura da mente” das outras pessoas, é isso?
— Também já foi descrita como “leitura da mente”, sim, ou, coloquialmente, como a capacidade em “colocar-se no lugar do outro”.
— Então os polvos e as lulas atribuem um significado às ações dos outros animais? (Mariana mostra uma surpresa que tem algo de encenada) —O meu namorado não come estes animais. Argumenta sempre que não consegue comer seres que suspeite serem mais inteligentes do que ele.
—Faz bem. Mas voltando ao nosso tema… só numa perspetiva antropocêntrica é que a vida humana tem mais sentido que a vida dos animais conscientes. Há qualquer coisa de obsceno no facto de uma espécie ter aprisionado completamente outras, primeiro através do processo de domesticação, depois pela pecuária. Conhece J.M.Coetzee, o sul africano a viver na Austrália que foi Nobel da Literatura em 2003?
— Conheço. O meu namorado tem Disgrace e os livros mais recentes, sobre Jesus, creio.
— Ótimo. Elisabeth Costello, a personagem de dois dos livros de Coetzee, relata com incomodidade como o abate industrial de gado antecedeu, na organização e métodos, os campos de extermínio nazis da II guerra mundial.
— Eu percebo. Embora a comparação me pareça surpreendente. Mas como é que o excecionalismo humano suporta isso?
— O excecionalismo humano, a convicção de que há algo de distintivo na espécie humana que a torna superior, é a ideologia mais pervasiva de todos os tempos. O excecionalismo está presente nas três grandes religiões monoteístas. No cristianismo clássico é claro que os outros animais da criação são excluídos da vida eterna.
— Não têm alma, segundo parece.
— Deve ser bem entediante um paraíso sem a diversidade animal. Mas o humanismo também ignorou os outros animais. A Mariana conhece o dito célebre “Nada do que é humano me é estranho”?
— Já ouvi isso em latim. Terêncio, um dramaturgo romano, certo?
— Sim. Mas o que esta bela frase tem subentendido é que “Já o que não é humano me pode ser indiferente”. (risos de Mariana) — Em 1985 Augusto Abelaira, o vosso escritor, escreveu um folhetim intitulado “O único animal que …” Ironicamente, o autor era um macaco-homem. Nesse folhetim tornava-se difícil descortinar o elemento distintivo da espécie humana. Sociabilidade, linguagem… Quando era criança deram-me um livro que se intitulava “Como o homem se tornou gigante”. Estava escrito que a marca específica da humanidade era a sua capacidade de construir ferramentas, utensílios, objetos com utilidade prática. (Mariana interrompe)
— Hoje, qualquer série de divulgação da National Geography ou da BBC- o meu namorado vê-as todas- mostra outros animais a usar utensílios. (1)
— Nem mais. Num artigo da Psychology Today são apresentadas duas posições extremas. Numa delas, o autor radica o excecionalismo já não em características biológicas ou cognitivas, mas morais.
— Gosto disso. O homem seria esse animal moral. O único animal que…é moral.
— “The Moral Animal”, era o título do livro de Robert Wright, nos alvores da Psicologia evolucionista.
— Mas, dr. Pichón, aquilo a que chama o excecionalismo humano não pode ser útil? Mesmo que seja uma crença, não será uma crença benigna? (Mariana entusiasma-se) Não possibilita a nossa capacidade de defender os direitos humanos e a igualdade, proteger a dignidade dos mais vulneráveis e mantê-los afastados da exploração e da instrumentalização…
— Só falta dizer que também ajuda à moralidade da Medicina… (o dr. Pichón, divertido)
— Se é preciso dizê-lo, eu digo: (Mariana com convicção) manter a moralidade da medicina. E digo mais: gerar o entusiasmo necessário para lutar contra o relativismo.
— Gosto desse entusiasmo, Mariana. Mas lembro-lhe que no campo contrário, outros autores consideram que o excecionalismo humano é uma forma de especismo, com fronteiras com o racismo, investindo o homem de uma superioridade sobre as outras espécies que lhe conferiria direitos especiais ilegítimos.
Em 2012, uma Conferência de investigadores de vários ramos das Neurociências reuniu em Cambridge. As conclusões foram apresentadas solenemente por um painel que reunia Phillip Low, David Edelman e Christoph Koch. (2)
— E em que consistiu essa proclamação?
— Que proclamaram eles? Que os animais não humanos têm os substratos neuroanatómicos, neurofisiológicos, neuro químicos dos animais conscientes.
— E que por isso é legítimo supor que têm alguma forma de consciência? Perceção, emoções, experiência corporal, atenção, inner speech? E capacidade para sentir dor, para sofrer? Para sentir prazer? Aceito isso sem dificuldade. Mas se olharmos para a Natureza, e já reparei que o dr. Pichón está a sorrir pensando que vou citar pela segunda vez o meu namorado…
— Pela terceira, Mariana, esteja à vontade.
— Se olharmos para a Natureza, vemos que não existe compaixão. Se quer saber no que penso enquanto ele vê as séries da BBC, posso tentar dizer. Não sei se o leão tem a teoria da mente do antílope que devora, enquanto ele ainda se debate, espasmodicamente. A Natureza é um campo de batalha em que, incessantemente, todos se comem uns aos outros.
— Há apesar de tudo uma diferença entre devorar uma gazela e gerir um aviário ou um matadouro. E há uma diferença entre devorar uma gazela e ter vacas imobilizadas em celas para aumentar a produção leiteira.
— Há uma diferença, certamente. Que faz sentido para os utilitaristas, não é assim? A quantidade de sofrimento que provocamos aos outros animais, é maior. Praticamos a morte industrial em grandes dimensões. É verdade. Mas a empatia parece também ser mais abundante entre os humanos, dr. Pichón. Os trabalhadores dos matadouros adoecem de culpa e depressão. E há uma outra questão que, agora que falamos livremente sobre estes temas, me… atormenta… por assim dizer.
— Diga, Mariana. Está a ser muito interessante ouvi-la.
— Eu percebo que sejamos compassivos com os animais e até que, em estado de abundância, não matemos para nos alimentarmos. Mas até onde vai a nossa compaixão?
— Explique melhor.
— Paramos nos insetos? Poupamos a ferrugem das oliveiras?
— Deixe-me contar esta experiência. (O dr. Pichón toma balanço como se fosse contar uma estória e Mariana cala-se, pensando que não está a controlar esta entrevista e passa-lhe pela cabeça que o diretor a irá comparar com a sua antecessora no programa) — Uma destas manhãs, ao acordar, havia algumas formigas em torno de umas partículas de pasta dentífrica, na bacia sanitária. Estavam numa entusiástica exploração. À minha aproximação bateram em retirada. Observei-as. Era fácil distinguir nelas, a reação primária de stress, o famoso fight or run. Pensei que tinham um eixo amígdala- hipotálamo-suprarrenal. Hormonas como a adrenalina e a noradrenalina. Neurotransmissores. Um sistema nervoso que lhes permitia perceber o ambiente, explorá-lo, sentir o perigo e fugir ou, se encurraladas, lutar, diminuir o volume até serem um pequeno ponto negro, ou mudar de cor. Ou fazer de mortas.
— Fazer de mortas, que curioso! Quando era pequena e via as batalhas do passado imaginava que se me obrigassem a combater, me fingiria morta no campo de batalha.
— Também eu. Na Argentina, quando ouvia a narração dos feitos heróicos em Junin, pensava que se estivesse lá, me fingiria de morto. Não por covardia, que a devia ter, mas por não identificar o meu exército e todos me parecerem semelhantes e além disso com superioridade bélica. Estava longe de imaginar que se tratava de uma estratégia biológica básica.
— Mas o que está a sugerir é que também nos insetos, como as formigas, existem “ os substratos neuroanatómicos, neurofisiológicos, neuro químicos dos animais conscientes”.
— Tal e qual.
— Incrível o que nos conta do seu encontro com as formigas e do reconhecimento, na fuga dos insetos à sua fúria suspensa, de um movimento próximo do humano. O dr. Pichón conhece Paul B. Preciado?
— O filósofo catalão residente em Paris? O autor do Manifesto Contrasexual? Sim li-o. Infelizmente um pouco tarde para mim.
— Pois ele escreveu “às vezes, sem que ninguém me veja, agacho-me e beijo um verme sabendo que a intensidade do meu hálito acelerará também a sua pulsação.”
— Muito lindo, Mariana. Surpreendente. Será que, num momento da evolução pós-Antropocénica, a Terra, liberta das tecnologias humanas necro-políticas, verá ainda o amor entre as espécies?
— Não sei. Há demasiadas questões? Esmagamos ou não esmagamos as formigas no lavatório? Preferimos a oliveira, cujo substrato neurofisiológico é obscuro, à larva da cochonilha negra? Hesitaremos entre ser insuportáveis niilistas ou assassinos em massa? Help, Dr. Pichón.
— Mariana, o que diria o seu namorado?
— O meu namorado costuma dizer: Não é uma adivinha, é um dilema. (3)
Referências
(1) Yes, Animals think , National Geographic
https://www.nationalgeographic.com/animals/article/150714-animal-dog-thinking-feelings-brain-science
(2) The Cambridge Declaration on Consciousness, Cambridge, UK, July 7, 2012. Ver 60 Minutes , o programa da CBS.
(3) Como diz um personagem da peça de Tiago Rodrigues, “Catarina, a alegria de matar fascistas”.