A voz rouca dos cigarros perde-se por entre os objetos que povoam a sala. A luz, filtrada por cortinas crepe e plantas que crescem na anarquia controlada dos vasos dispostos sobre os parapeitos, mal lhe deixa ver o rosto. Garanti-lhe que não captaria imagens e que a gravação seria utilizada para memória de escrita, nunca divulgada, mas R. não confia em ninguém. Passou assim as últimas décadas. As razões não lhe faltam: todos os laços que tinha, familiares e de amizade, foram “envenenados”, segundo as suas palavras, após aquela noite em que resolveu investigar os ruídos e as luzes que provinham da clareira. A pequena casa que habitava, uma de várias propriedades que a família tinha naquela zona, ainda lá está, abandonada desde a sua fuga da aldeia.” Nunca mais ninguém ali foi morar, é como se tivesse ficado assombrada”. Ele também nunca mais voltou à aldeia, por não ter o que o levasse lá, nem tenciona fazê-lo, mesmo sabendo que já não lhe resta muito tempo.
O caso deu que falar na altura e alguma imprensa local deu conta do facto. Durante algumas noites, a população da aldeia avistou luzes estranhas que ora cruzavam o céu noturno, ora vinham do eucaliptal que rodeava a povoação. “As pessoas andavam assustadas, fechavam-se em casa. A guarda chegou a ir lá uma noite, mas não viram nada, um deles até disse a uma tia minha, em tom jocoso, que aquilo era do tinto.” Era, como ainda é, uma aldeia pequena, de gente pobre, longe de tudo e imersa num clima de religiosidade profunda. Isso terá contribuído, segundo R., para que o assunto fosse desvalorizado ou até transformado em motivo de chacota.
Mas R. atreveu-se a procurar uma resposta e, na terceira ou quarta noite em que o fenómeno (é como se lhe refere) se deu, mergulhou no arvoredo, algo de que se arrepende até hoje. Entrevendo a luz que passava pela barragem de troncos, resolveu sair da casa, onde vivia sozinho desde que fora expulso de casa dos pais por razões que preferiu não revelar, e procurou a sua origem. “A luz vinha da clareira aberta na primavera anterior pelo derrame de ácido de baterias que uns vizinhos usavam para mondar os terrenos e que ali tinham armazenado. Foi um sítio onde nunca mais cresceu nada, nem as acácias.” Mas, lá chegado, um clarão cegou-o. Só se lembra de sentir uma grande paz, um assomo de prazer como nunca mais voltou a sentir. “Não perdi os sentidos, mas foi como se estivesse num sonho. Senti-me ser sugado para o ar e depois manipulado, não sei por quanto tempo.” Só voltou completamente a si na manhã seguinte, debaixo do sol que invadia a clareira. “Não sei quanto tempo passou desde que me apanharam até que voltei a ter plena consciência de mim, nem me lembro com precisão do que aconteceu. Mas introduziram objetos em mim, sentia que debaixo da pele havia alguma coisa, algum dispositivo.” Passa as mãos pelos braços enquanto fala da invasão que sofreu. “Era pelo corpo todo, que parecia ter deixado de ser meu.”
Foi encontrado no chão da clareira, na manhã seguinte, pelos vizinhos. Vendo o estado de desorientação em que se encontrava, tentaram tratá-lo com cataplasmas de couve e alho na testa, mas perante a ineficácia destas mezinhas, um cunhado meteu-o no atrelado do trator e levou-o ao hospital. “Na aldeia, naquela altura, ninguém ia ao hospital. Tudo se tratava em casa com os meios disponíveis. Hoje, já se fazem cataplasmas com abacate, que são muito mais eficazes, mas naquele tempo ninguém sabia o que isso era.” Esse foi, para si, o primeiro sinal de que o seu mal não era apenas do corpo e do espírito, mas também social. “Deixaram-me no hospital, onde fiquei mais de uma semana, e ninguém lá foi saber de mim.” Foi internado num quarto só para ele e visto por médicos que sempre se abstiveram de lhe apresentar um diagnóstico. “Também apareceram lá uns militares a acompanhar um indivíduo que me pareceu ser norte-americano e que me perguntou se me lembrava de alguma coisa. Como eu não me lembrava de nada, foi-se logo embora. Eu só queria saber que coisas eram aquelas debaixo da minha pele.”
No dia seguinte, levaram-no para o bloco operatório e anestesiaram-no. R. só acordou já no dia seguinte, de novo no quarto, sem sinal de nenhuma intervenção. Mas os objetos subcutâneos haviam desaparecido sem que ninguém tivesse reconhecido a sua existência. O relatório médico só referia a existência de uma fissura anal, notícia que se propagou, fora do seu controlo, de boca em boca. “Quando regressei à aldeia, ninguém me falava. Lembro-me dos olhares furtivos que evitavam cruzar-se com o meu. Percebi que tinha de partir.” Passou os anos a correr o mundo, fazendo trabalhos ocasionais que lhe permitiam pouco mais que subsistir. Recusa-se a aventar explicações para o que se passou naquela noite e a responder a perguntas sobre se voltou a presenciar algo semelhante. Diz apenas que “foi algo de outro mundo, algo que nós não estamos preparados para compreender”. Quando lhe pergunto a quem se refere aquele “nós”, baixa a cabeça perdida nas sombras da sala e dispara: “nós, aqueles a quem, por defeito de nascimento, a excentricidade está vedada.”