1. O ladrão numa ponta do corredor, o residente na outra. Bastava a este retardar a sua reação e permitir que o criminoso largasse o aparelho de smart tv que tentava furtar, se virasse para a porta e corresse para as escadas do prédio. Daí seguiria o caminho de uma vida em fuga sob aquela luz crua e azulada que nunca abandona os delinquentes das zonas temperadas de clima oceânico. O roubo do aparelho não seria justificação bastante para que o residente procedesse de outra forma. Percorreria a via profana dos procedimentos policiais, sem qualquer expectativa de que estes dessem qualquer resultado material, posto o que voltaria ao quotidiano do costume acompanhado de mais um trauma não incapacitante. Mas o residente resolveu antes fazer frente ao ladrão, envolvendo-se numa luta que acabou com a destruição do televisor e um incisivo a menos.
2. Depois de visitar a loja nove vezes numa semana, acabou por perder a cabeça e comprar o eletrodoméstico. Os dedos tremiam-lhe, enquanto digitava o código do cartão de débito daquele objeto grande, redondo, bonito, com acabamentos em aço escovado, glorioso na sua inutilidade. A maior parte das pessoas acredita em qualquer coisa que contenha ou encubra as suas maiores ansiedades. Muitas resolvem a sua angústia de morte acreditando que simplesmente não vão morrer, que quanto muito passarão por um momento de transição, de duração variada, entre o instante e o indeterminado, com ou sem a assistência de uma espécie de guru pseudo-partenogénico. Outras projetam-se num porvir material que se vai reconstruindo através de uma sequência de balas de prata ou, na sua falta, de inox: quando uma falha o alvo, logo surge outra que irá acertar. De uma maneira ou de outra, a morte não é mais que o fim da expectativa, um não evento. De uma maneira ou de outra, tudo acaba por se resolver.
3. Entrou no elevador e pressionou o botão do piso zero. Um prédio demasiado moderno para utilizar francesices como “rés-do-chão” ou a sua patética abreviatura. A porta automática fechou-se e ele perdeu-se no que tinha ali acontecido e na certeza de que não voltaria àquele apartamento traumático, àquele quarto onde as almas desaparecem em que vira e respirara o que jamais pensara ser possível. Foi naquele sítio sem futuro que sentiu pela primeira vez a sensação de que havia sido amaldiçoado. Quando pensou que estava a chegar ao piso zero, interrompeu involuntariamente os pensamentos e assumiu a postura de quem se prepara para sair do elevador. Mas o elevador não parou, causando-lhe um vazio no peito e no estômago que o fez sentir como se, afinal, aquilo ainda não tivesse acabado. Teria pressionado o botão errado e dirigia-se para o piso menos um, as catacumbas do estacionamento, pensou, mas na verdade ainda estava só a passar pelo piso dois. Aquelas ideias todas tinham conseguido percorrer o seu cérebro antes de chegar ao piso zero.
4. Perguntou ao avô por que razão instalara um bebedouro na varanda, logo ele que nunca gostara de pássaros. O avô respondeu-lhe que por ali parava, todas as manhãs, um colibri. Ele acordava cada vez mais cedo, o sono ocupava-o menos tempo à medida que se aproximava o sono final, e gostava de aproveitar para apanhar o ar fresco imediatamente antes da alvorada, altura em que o pássaro aparecia. Fazia-lhe lembrar a esposa, acrescentou, e os seus hábitos matutinos. E o seu gosto por pássaros, chegara a ter uns canários enjaulados que ele soltara às escondidas para a morte certa por não gostar da sua cantiga. Agora, disse à neta, era como se aquele colibri fosse a companheira de uma vida de maus tratos a visitá-lo, o espírito dela a fazer despertar nele o gosto serôdio por um prazer que nunca soubera apreciar. E o bebedouro que ele ali tinha posto era a sua forma de lhe pedir perdão. A neta, comovida com a fragilidade daquele velhote outrora austero e pelo qual era agora responsável por omissão, não conseguiu conter as lágrimas. Saiu, para que ele não a visse assim, e telefonou aos serviços de sanidade pública, que prontamente vieram buscá-lo para o internar no asilo.
5. O lanho, uma fenda na rocha de onde as lendas diziam sair os espíritos do ecossistema florestal, havia sido vandalizado. Tinha-se passado do temor irracional assente numa pareidolia forçada e excessivamente freudiana para o puro desrespeito. Tinham pintado na rocha as palavras que os tementes pagãos sempre evitaram para se referir àquela curiosa formação, a não ser na taberna e depois de as mulheres saírem. Tinham desenhado pénis rupestres, escrito dichotes demasiado brejeiros para darem vontade de rir e entalado na fenda o tronco de um pinheiro vítima da processionária. Tinham urinado profusamente para o seu interior, que exalava agora um fedor hediondo. Tinham deixado o pequeno terreiro que o uso criara à sua frente pejado de latas e garrafas de cerveja, de beatas, de invólucros de comida rápida. Foi preciso limpar aquilo tudo, depositando os dejetos no caixote do lixo que a junta de freguesia ali colocara, para que se pudesse fazer o piquenique da Encontro Anual de Contabilistas Pela Verdade.