Diz-se que um ser divino chegou ao mundo nas orações dos desesperados, por não encontrarem um sentido para a perda, para a fome e para as chuvas. Esses desesperados, não pela forma mas por desejo, que se ajoelham na lama, que entrecruzam os dedos numa filigrana de falanges, dobrando o tamanho do seu coração, expondo-o no exterior torácico, num aparato de oferenda, cujo corpo emula um altar para que todos saibam que se celebra a magia desse orgão muscular, dessa bomba que trazemos dentro de nós, que tantas vezes nos explode nas mãos e que tantas outras vezes nos acalenta, respiradamente, no sono de superfície que é a lua de verão. Não há liturgia que não se devolva ao Passado como evolução de um sem número de acasos e outros destinos à escolha. Sabemos que todos os nossos gestos carregam consigo uma carga obsoleta, uma razão já desconhecida, perdida no caminho do tempo porque a memória muscular prevalece sobre a do fundamento, fazendo com que sejamos animados por uma exterioridade difícil de compreender ao ponto de desistirmos de uma explicação cabal.
Não será, portanto, de estranhar, que nos deparemos com um corpo enorme, erigido a partir dos estratos que se vão acomodando às incertezas e preenchendo os vazios de sentido. Uma entidade simultaneamente complexa, pela exigência com que cada desamparo reclama a si uma especificidade extrema, e simples, na medida em que se aloja no discurso mitológico sob forma de mancha, um fantasma capaz de visitar todos e qualquer um sem ser desmascarado ou acusado de espúria, balançando entre a hiperdefinição (como garantia de uma resposta ecuménica e eficaz) e uma espécie de expressionismo extremo (como garantia de um reconhecimento universal) — um quadro de aparências onde, perante o borrão que sugere e desvanece cada elemento, cada objecto, cada um dos sobreviventes do gesto que o compõe, somos impelidos, pela vontade de nos inserirmos na esfera do propósito, a dissecar cada pústula, incapazes de aceitar que tudo não passa de um grande erro ao qual nos foi dada a sorte do acesso.
Mas se nos deixamos apanhar, ingenuamente, nas armadilhas dessa representação com traços de divindade, de onde retiramos as pistas para prosseguir a vida com a sensação de que estamos a fazer sentido aos olhos de alguém, não deixa de ser verdade que a tal memória que carregamos nos músculos repõe uma elementar justiça à energia partilhada que nos sincroniza também na prática de um grande acidente comum. Daí ser possível desenhar a hipótese de um corpo (o corpo enorme) que vai deixando o seu rasto na tela à qual chamamos de mundo e permitindo justificar a legitimidade de um ser-a-partir-da-forma, uma mímica sem intérprete. Por outras palavras, é possível incluir no rascunho da civilização uma ideia de corpo autogerado (e autogerido) se estivermos cientes da sua imprescutabilidade. O alcance de tal definição será tão mais consequente quão menos lhe exigirmos um programa moral, sentimental ou ideal de justiça. A mancha que elabora as silhuetas mais definidas, num gesto-forma, não deverá nunca alhear-se da predisposição para a incerteza. Assim, cada parte-segundo desse movimento de aparências, a tão aclamada potestade, não passará de um murmúrio do Passado, não enquanto recordação, mas enquanto eco de um mistério animalesco, como o trote dos cavalos de Lascaux (antecipando o Cinema) ou o indício fotográfico sugerido pela representação de cristo no Sudário de Turim: tudo existe antes de ser descoberto.
Esse corpo, que assistiu aos primórdios do domínio do fogo e que se desenvolveu, em rizomas, nos leitos dos grandes rios, à medida que a agricultura estabelecia uma nova ordem na maneira de reorganizar o chão e o tempo; esse corpo, que avançou no horizonte rumo à ténue separação do céu e do mar, do céu e das pontas brancas, do céu e da terra crespa, para se fixar noutras fertilidades e tons de sol; esse corpo, que viu as cidades nascerem-lhe no colo, transformando a pedra, arrancando-a do subsolo, tornando-a mais um fetiche entre fetiches. Sim, esse corpo, feito de minérios, de florestas, de esperma e de espasmos, é o que sobra da História, ou melhor, é ele mesmo a história do não contado, o que vai resistindo ao esquecimento, à dilaceração e à digestão das coisas: o que resta do que nos trouxe até aqui. É um corpo que existe, fisicamente, no traçado das ruas, na garganta de cada sarjeta, na solidez de uma coluna, porque concentra em si a precisão da forma, lavado dos erros, das excrescências, liberto para avançar contra nós, que o poluímos diarimente de coisas novas e demasiado nítidas. Cantamos uma criatura para que nos salve, mas decoramos o seu corpo (imaginamo-lo) com todos os apetrechos que nos repugna. Somos, digamos assim, autores do cadáver de deus — pobre imagem de nós próprios. Indiferente a isso, prossegue o movimento que nos escolta. Essa mancha é o corpo lavado, sem grande detalhe porque o detalhe especifica, impõe, isola. A mancha é o aberto para todos, a mesa para colocarmos as mãos e os olhos. A taça onde despejamos mais do que vamos beber. Um lençol de pedra, uma mortalha incendiada. Um braço sem fim. Uma cidade que vai cobrindo o planeta até não restar um palmo de erva. Então cobrirá o mar, e seremos todos um grande gesto esférico, um corpo envolto num segredo para as próximas criações.