O lagarto azul pintado floresceu nas costas do cadáver do surrealismo. O osso sem tutano é agora uma concha onde se albergam as moscas que engole, uma concha mole. Pobre do caracol desmiolado, concha de si, vazio onde se escuta o mar ao longe que cresce saudoso na nossa cabeça.
Ao longe, “vaga agora sobre as vagas o esplendoroso cisne que logo Leda enfornará”, inscrição encontrada em Braga, numa peça em barro cru.
Onde os dedos abrem um rio de sangue.
Mas não há mar, não há ontem. É o dia que falta no teu calendário, como se fosse uma nota que decidiste não tocar. Mas continua a existir no meu e desde então vivo um dia atrás de ti, condenado a reagir ao teu futuro vazio, amputado da causalidade. Um problema de matemática sem solução.
Um silêncio a dois onde a tua língua enferruja a minha boca metálica ao ouvido de um verso que se inflama.
As putas em Genève têm o sono leve
As putas em Pompeia não têm quem as leia
As putas em Pompeia escrevem sem meias
medidas
Escrevem no barro com letras tremidas sumidas.
As palavras certas, a fórmula exata para a tradução do que somos, a ecoar em mim. O verbo — no início, no fim e no meio de nós, entre nós, a ser a barreira quase invisível que garante que ainda é possível distinguir-nos. E, ao ouvido, a torrente.
E, às mãos, o peso, aos pés, o chão, aos olhos, o meteorito. Todos a entoarem em coro um céu que cai em pedaços, não se sabe bem onde.
A cada nota a pedra vibrava, a cada queda o eco respondia uma oitava acima. Era incontrolável. Quanto mais o céu caía, mais a terra lhe respondia. O chão era agora uma onda sonora gigante feita de dissonâncias. Na árvore à beira da falésia, um pássaro ensaiava uma melodia.
Um céu metálico pesava sobre o desfiladeiro. O vento assobiava bem alto. Uma tempestade espreitava por entre um paredão de estática. O tentilhão bem cantou — pega, pancadas e remate — mas isto era só mais um plano de intervalo de um qualquer documentário sobre vida animal que a televisão transmitia naquele café cinzento. Lá fora, uma nitidez vítrea adensava-se.
Era uma vez um rapaz que me mostrou a sua sorte. Olha, eles disseram: “Viste o nosso jantar de Natal?”. O rapaz respondeu: “Não, não viste que ele tem olhos?”. Isto, claro, inclui o robalo doméstico.
À rede chegam meia dúzia de peixes.
[O lagarto azul foi escrito, numa volta única, por AMS, API, CJ, DB, FF, FM, HB, LJ, LLP, MM e RAS]