where it is water that makes land valuable, both cooperation and conflict exist together, as if built into the irrigation systems themselves. Irrigation is by its nature “a largely cooperative enterprise,” and yet, due to the material nature of water, “[d]ividing this fluid, mobile, scarce substance … was difficult and created ample opportunities for error.”
Maya K. Peterson (2019), Pipe dreams, water and empire in Central Asia’s Aral sea basin
— Como é possível um povo extinguir um mar e sobreviver física e psiquicamente a esse feito? — foi a pergunta que fiz no jantar, ao saber do desaparecimento do Mar de Aral. O meu marido, indignado, mostrou-me o meme que circula no Facebook, que atribui às alterações climáticas a secagem do quarto maior lago do mundo em menos de 40 anos. Alguns dos comentários à publicação insultavam os proponentes desta redução, desconhecedores da história “não natural” que levou ao fim do Aral, por não saberem que “foi a URSS que extinguiu o mar”. Apagar a história humana do Mar de Aral pondo os acontecimentos “na conta do clima” pareceu-me redutor e suspeitei mesmo se não poderia tratar-se dum grande apagão da história humana. Decidi aprofundar o assunto e dediquei-me com afinco a encontrar os elos que faltavam na história dos povos do Mar do Aral. Acrescento que o desaparecimento do quarto maior lago do planeta não passou despercebido. A evaporação das águas foi observada por satélite para todos os terráqueos verem. Pudemos, enquanto cidadãos planetários, acompanhar a gaseificação das moléculas de H2O e a mudança do estado da água, sem direito a invocar a bênção do desconhecimento, como secretamente cheguei a desejar. À pergunta inicial tive de acrescentar: — Como é possível um povo extinguir um mar e sobreviver física e psiquicamente a esse feito, sabendo que a extinção era previsível?
Como sempre, procurei refúgio na ciência. O campo que respondeu às minhas inquietações foi o water studies (estudos da água), que procura entender as relações da água, enquanto protagonista, com os seres humanos. O livro de Maya Peterson (2019), Pipe Dreams — water and empire in Central Asia’s Aral sea basin (Sonhos por um canudo, água e o império na bacia do Mar Aral na Ásia Central) é reconhecido como a referência mais detalhada sobre os extraordinários acontecimentos. A história começa no final do século XIX com a ocupação da Ásia Central pelos czares. Os engenheiros russos deambulam-se em barcos com velas brancas no Mar Aral (também conhecido pelo Mar das Ilhas) para mostrar a superioridade da modernidade às margens que os observam, nómadas ou recém-sedentarizados que habitam uma paisagem mágica repleta de vegetação ripícola e do extinto tigre-do-cáspio. Os grandes barcos a vapor são inviáveis por não conseguirem ter uma fonte local de combustível, mas só os russos sabem disso. As velas brancas são o símbolo do novo poder que chega, e todas as grandes potências agradecem à Rússia por civilizar aqueles povos atrasados que ocupam o espaço vazio desde o Cáspio até aos Himalaias, os “quistãos”: Uzbequistão, Cazaquistão, Turcomenistão, Tajiquistão e Quirguistão. O seu atraso, segundo os russos, era duplo: vítimas da opressão da natureza e de líderes totalitários que os escravizaram, seria a Rússia a potência a trazer a luz da modernidade. A colonização da Ásia Central pela Rússia tinha uma vantagem óbvia: a derrota final dos tempos dourados do Islamismo que ainda se fazem sentir nas capitais através dos seus impressionantes monumentos. E a modernidade só poderia chegar através da irrigação, pois nesta região, quem controla a água pode fazer os desertos florescer.
A água na Ásia Central segue um curso conhecido ao longo de milénios — acumula-se nas cordilheiras que são “o teto do mundo” e escorre no degelo para formar dois grandes rios, o Amu Daria e o Syr Daria, massas indisciplinadas que carregam sedimentos e sais para a depressão do Mar do Aral. Por alguma razão, parece evidente, olhando para o mapa, que estes dois rios poderão ter desaguado noutros lugares, quem sabe, no próprio Mar Cáspio. O Mar do Aral parece ter uma existência temporária, ser uma opção entre várias. Circulam entre os russos estranhos mitos sobre os nativos terem desviado o curso dos rios para esconder ouro e outras riquezas, o que reforça a crença de que é possível “dar vida aos desertos” pelo curso da água. E o sonho ganha um motor económico, o da produção de algodão, tornando a Rússia autónoma nesta fibra, especialmente após as quebras de produção dos Estados Unidos da América pela Guerra Civil e fim da escravatura.
O algodão é uma cultura com muita sede. Requer um consumo de água anormal: um quilo de algodão pede 10.000 litros de água. A irrigação foi alvo de projectos megalómanos, sendo que a ciência demorava a afirmar superioridade perante os conhecimentos nativos. Os pobres engenheiros russos não conseguiam compreender os sistemas de irrigação vigentes, instalar as métricas necessárias para uma ciência de ordem e previsibilidade. Não sabiam, por exemplo, quantificar a água que cada campo necessitava. Delegavam a distribuição do recurso nos capatazes locais, deixando a porta aberta para casos graves de corrupção. Como consequência, tinham dificuldades em mobilizar os recursos humanos necessários ao trabalho dos canais, e os seus sonhos de desviar rios inteiros aproximavam-se mais dos delírios irrealizáveis do ópio (pipe dreams é uma metáfora para os sonhos sob este narcótico) do que do trabalho real necessário para acabar com o atraso dos nómadas das estepes. É então que os planos de irrigação sem futuro são resgatados por um louco. O grão-duque Nicholas Konstantinovich da Rússia, neto do czar Nicolau I da casa Romanov, militar dotado, é exilado para Tashkent, capital do Uzbequistão, por roubar as joias da mãe a mando de uma “aventureira” americana de Filadélfia. A família continua a dar-lhe uma generosa mesada para uma propriedade luxuosa nesta fronteira do império, mas Nikolai é uma pessoa estranha. Apaixona-se pelo Uzbequistão e pela missão da irrigação, e toma nas suas mãos a construção dos canais. Despe o seu casaco russo de trespasse e adopta o traje nacional do Uzbequistão, é visto a passear no seu robe de seda e chapeuzinho. Imiscui-se na política local, aprende a língua e os costumes e começa a sincretizar os sonhos locais com a colonização russa, mostrando que só com a modernidade científica da Rússia a Ásia Central pode ser “grande outra vez”. Usa a palavra nativa para canal, ariq, e aplica a sua mesada na construção, sendo o patrono e filantropo de nativos e colonizadores eslavos, camponeses paupérrimos que chegam da Rússia deportados ou convencidos que a Ásia Central é Shangri-La comparada com as fomes de onde fugiam, ironicamente para mostrar a superioridade da vida sedentarizada.
Nikolai aprende e documenta as técnicas nativas de irrigação e conjura uma realidade onde os locais e os colonos eslavos trabalham lado a lado para produzir algodão. As terras são o prémio para o esforço e o grão-duque torna-se patrono dos assentamentos, ajudando as famílias e as pessoas com deficiência, inválidas ou doentes. A administração russa tolera a presença do príncipe destituído que naquele lugar salva a sua alma, escrevendo à mãe os seus feitos. Morrerá em 1918 como o resto da sua família, não à mão de revolucionários bolcheviques, mas de doença. Diziam os burocratas que “felizmente a sua mania é a benevolência”, e suspeitavam que os nativos o tomavam pelos déspotas do passado. Mas uma vez morta a visão romântica de um império simbiótico capaz de co-florescer com a colónia, os burocratas da União Soviética mostraram o poder sobre o povo.
James Scott, perito nos efeitos devastadores dos megaprojectos de Estado na Ásia, estudou por que as boas intenções do planeamento central falham tão espetacularmente no processo de construir uma “vista de cima”. Mas Maya Peterson não consegue ser tão otimista quanto Scott ao explicar a dissonância entre as ambições estatais e a realidade. Ela diz-nos que o Mar do Aral foi vítima da burocracia mais feia, de métricas e objetivos a alcançar sem olhar a custos nem ao chão das imagens de satélite. A feiura traduziu-se numa lógica de caos humano, com pessoas a enfrentarem os quatro cavaleiros do Apocalipse, fome, doenças, guerra e colonialismo. A violência burocrática foi de tal ordem que motivou um episódio de extermínio íntimo, onde os nativos e nómadas mataram e mutilaram os seus colegas eslavos. A marca da conquista sobre a natureza foi a secagem do Mar do Aral, mas a marca mais indelével foi na organização comunitária. Os canais de irrigação foram construídos por trabalho forçado disfarçado de trabalho comunitário. Os nativos, sem conhecerem Elinor Ostrom, detentora do Prémio Nobel da Economia pelo seu estudo dos comuns, já cumpriam com os seus princípios de governo mediante um sistema que parecia “interligado com os ciclos e com a vida social”. Toda a gente tinha acesso à terra e água através dos “homens bons dos canais”, por sua vez vigiados pela comunidade de regantes. A administração soviética recrutou a forma de trabalho comunitário nos canais mas dilacerou o seu sentido: um trabalho forçado a que o cidadão não pode escapar porque é seu dever produzir algodão, sem nunca experimentar as melhorias prometidas. Após a descolonização e independência da União Soviética pós-1991, os governos nacionais aprenderam bem a lição e exploraram até ao limite a produção de algodão sem qualquer investimento na manutenção de canais, com pessoas doentes pelos pesticidas e fertilizantes que contaminam as águas, e a obrigatoriedade de todos os trabalhadores públicos terem de participar na colheita de algodão, incluindo os que trabalham em hospitais e escolas. No Uzbequistão, os alunos iam com os professores apanhar algodão. Eis que me deparo com o trabalho notável de uma activista, considerada a mulher mais corajosa do Uzbequiestão, Elena Mikhailovna Urlaeva, que mobilizou a comunidade internacional para um boicote global ao algodão do Uzbequistão, produto do trabalho infantil, que terminou em 2022 com o fim da colheita forçada. Suponho que tenham mecanizado a apanha onde tal fosse possível. A modernização bolchevique considerou o trabalho humano superior ao das máquinas que não tinha como transportar, reparar ou manter em funcionamento por escassez de combustível. Confesso que não sei o que é a coragem perante o Apocalipse. O que sei é que o desaparecimento do Mar do Aral é o desaparecimento do povo, transformado num Mar de Carneiros — o sonho dos ocidentais da planta do algodão, imaginada, por nunca a terem visto, como um zoófito, metade vegetal e metade carneiro, cuja lã seria algodão, que morria quando se acabava o pasto à sua volta, temendo apenas os homens e os lobos.
Podemos dizer que “foi a URSS que extinguiu o mar”. Mas que dizer do lago Salton, que seca a olhos vistos na Califórnia, repleto de peixes mortos, imagem borbulhante de filmes de terror, com gases tóxicos e cadeiras de praia espalhadas pelo deserto venenoso? O problema das areias é que estão contaminadas com pesticidas devido ao desvio do rio que alimentava o lago Salton para a irrigação de bróculos e alfaces. A maioria da população é hispânica ou latina. As mães do lago Salton permitiram que filmassem os filhos com asma, infecções respiratórias e de pele, na luta por melhores condições de saúde. Espero que um dia Nancy Del Castillo, Mary Bautista e as outras mães sejam as mais corajosas da nação, como foi Elena Urlaeva.
The Vegetable Lamb of Tartary