Nós costumávamos dizer que o meu Pai tinha sete vidas. E tinha. Ao longo da vida, ouvi contar, várias vezes, as ocasiões em que ele fintou a morte. E, realmente, ele tinha jeito para lhe fugir. Jeito e vidas extra, que o jeito não é nada sem sorte.
Quando o meu Pai nasceu, a parteira da terra estava a fazer outro parto ao fundo da rua – o parto de um grande amigo dele, que nasceu no mesmo dia e à mesma hora. A Mãe desse amigo antecipou-se por meia hora à Avó Florinda: quando as águas lhe rebentaram, a parteira já estava a braços com outro nascimento. O destino preferiu encaminhá-la para a porta ao fundo da Rua Direita, em Salvaterra, se calhar porque sabia que o meu Pai tinha sete vidas e, se ficasse sem esta, ainda lhe restavam seis. O mesmo destino encaminhou a Tia Clara para casa dos meus avós, onde foi encontrar a Avó Florinda a dar à luz sozinha. A história do parto do meu Pai era um mito na família. A Tia Clara, varina orgulhosa e valente, nunca se cansava de contar que era graças a ela que o Dinis tinha nascido vivo. Nunca saberemos o que era inventado e o que era real, mas entre ele ter nascido de pés, a ter vindo com o cordão umbilical enrolado à volta do pescoço e pesar mais de cinco quilos, as histórias do parto dele configuravam uma epopeia obstétrica.
A história acabava, invariavelmente, com a Tia Clara a dizer sempre as mesmas palavras: “eu só lhe dizia: faz força, Florinda, que é um rapaz que vale por dois!”. Ele lá veio ao mundo e a minha Avó chamou-lhe Dinis, porque Dinis era o nome do filho que Tia Clara tinha perdido, com dois anos, para a meningite – a grande dor da vida dela. A Tia Clara teve sempre uma adoração pelo meu Pai, o Dinis que ela conseguiu salvar – e era comum ver a minha Avó olhar para o filho, com aquele brilho que só se encontra nos olhos das Mães, e dizer baixinho “faz força, Florinda, que é um rapaz que vale por dois!”. Passado uns anos, o meu pai atirou-se ao Tejo para salvar de morrer afogado o amigo que lhe passou à frente na fila para o mundo. Foi a segunda vez que o meu pai lhe salvou a vida.
Com quatro ou cinco anos, a caminho da praia, em Troia, o meu Pai comeu umas bagas vermelhas de uma planta que encontrou pelo caminho, do ferry até ao areal, e que lhe pareceram apetitosas. O meu Avô contava que o ferry já não acabou de meter o pessoal para a viagem de regresso, porque ele veio para trás com o filho ao colo, a pedir ajuda. Alguém lhe deu a beber algo que o fez vomitar e ele lá fez a viagem até Setúbal, onde estava um médico à espera dele no cais. O Avô dizia que aquilo tinha sido um milagre, que ele tinha visto o filho do lado de lá e que não sabia como – ou quem – é que o tinha ido buscar. Já o meu pai contava que se lembrava que o meu Avô foi toda a viagem a repetir-lhe baixinho ao ouvido, como numa oração: “acorda, Dinis, temos de ir à Luz ver o Benfica, filho!”. É possível que as coisas andem ligadas: o clube do Eusébio era uma espécie de religião para o meu Avô e o meu Pai nunca, mas nunca, perdia um jogo do Benfica. Fosse o que fosse, ia ter de esperar. Até a morte.
Quando o meu Pai estava na tropa, no Montijo, a tentar apanhar um comboio já em andamento, escorregou e caiu para a linha, ficando preso debaixo do comboio, entre os carris e o cais de embarque. Ele ficou ali, largos segundos, muito encolhido, a sentir o comboio passar rente por cima dele, a alta velocidade. Jeito e vidas extra, que o jeito não é nada sem sorte. Quando ele contava esta história, havia sempre dois detalhes que nunca falhavam: a descrição da eternidade que o comboio demorou a parar de correr sobre ele e a deixá-lo ganhar; e o facto de ele ter uma carta escrita para a Mãe Regina, na mochila. Ele só dizia isto, sem acrescentar mais nada, mas nós ouvíamos o que ele queria dizer.
Quando eu tinha 18 anos, um dia, cheguei a casa do Liceu e os meus pais estavam os dois na sala, à minha espera. Ele ia para o Hospital Pulido Valente no dia seguinte. Iam tirar-lhe um pulmão, mas não fazia mal: o meu Pai vale por dois, um pulmão dele respira melhor do que dois dos normais. E assim foi. Passado dez anos, os meus pais estavam novamente os dois na sala, à minha espera. Metástases é uma palavra tão feia e o meu Pai gostava tanto de palavras bonitas, mas não fazia mal: havia uns tratamentos e o meu Pai não era de se ficar. Passaram vinte anos e os médicos observam-no com espanto: vinte anos depois e continua tão bem, tão forte e resistente, espantam-se os especialistas, que só se admiram porque não conhecem o meu Pai, não sabem que ele é assim e que não faz mal. Agora, dizem que há uma placa de pedra que tem gravado o dia em que no coração do Ribatejo não houve parteira que chegasse para tanta vida e um nome: Dinis Manuel – o nome do anjo da Tia Clara e do Bisavô Manuel Maria. Mas é mentira e não faz mal, porque o meu Pai tem sete vidas.