Enrique,
Não sabia que te interessavas por biologia. Assim, tão intensamente. Durante muito tempo o comportamento humano não foi um tema, para mim. Nem a ideia de que podíamos aprender algo sobre nós próprios a partir da observação de outros primatas ou de mamíferos, aves, sei lá.
Agora, talvez influenciada pelos teus programas, surpreendo-me a olhar para os animais. Os cães olham sobretudo para o chão. Mas já surpreendi cães a olhar para o céu.
Uma coisa que sempre me intrigou foi o comportamento das fêmeas dos mamíferos, no acasalamento. As fêmeas parecem furtar-se ao contacto mais íntimo. A qualquer contacto, aliás. Os machos fazem tentativas várias, algumas das quais grotescas. As cadelas rosnam, escondem os genitais, metem os rabos entre as pernas, mostram os dentes. Até que um macho consegue montar uma fêmea. Não gostas do termo montar? Quando os biólogos estudam os efeitos masculinizantes da testosterona nos animais de experiência, uma das características que pesquisam é “montar”. Depois de montar, o macho arqueja, empinado nas patas traseiras. A fêmea olha em frente, como um serafim na roda da fortuna. Aquilo dura breves momentos. Três minutos no cavalo, ao que ouvi (o garanhão de que te falei e que vi em Bruce Madame, despejou-se em segundos, o tempo de lhe cobrirem o pénis com uma coifa para a recolha do esperma).
O que surpreende, é que o comportamento de corte por parte dos machos, quando existe, é breve, muitas vezes assemelhando-se a uma violação. E no pós-coito não há gratidão que se veja, ternura, comunicação especial. Já olhei nos olhos destes animais. Não era o silêncio dos inocentes. Era a tristeza. Talvez não seja o que se pode chamar uma perita em fisionomia animal. Mas depois do coito os cães parecem tristes de morte.
As mulheres gemem. Não sei se os homens também gemem. Tenho dormido com poucos homens e o que sei é sobretudo dos filmes, feitos sobretudo por homens. E da literatura, maioritariamente masculina. Aliás, na maior parte dos filmes, as mulheres não demoram meia hora a atingir o êxtase. Percebo que é economia narrativa, artifício ficcional, elipse. Mas sempre que nos filmes um par se come no elevador, sem preliminares, como se dizia, desconfio de que o realizador seja um homem. Já me aconteceu, se isso conta ou interessa. Mas era um elevador excecional.
Como te dizia, as mulheres gemem e os homens não sei. Devem gemer menos, de forma menos notória. Menos tempo, pelo menos. Será que o gemido é um reliquat do choro? Que na arqueologia do gemido esteve o choro? Que as mulheres sofreram a penetração até ela se tornar satisfatória, mais ou menos na altura em que o coito começou a ter uma variante frontal?
Espanta-me o orgasmo feminino. Talvez aumente o sucesso reprodutivo. Talvez os espasmos tornem a penetração mais profunda, façam progredir o esperma. Mas o prolongado tempo que as mulheres levam a atingi-lo, é difícil de explicar. Ocorre-me que seja uma forma de seleção dos homens. Uma prova real destinada a desmascarar os falsos machos dominadores. As mulheres selecionam os que são capazes de esperar, os que aguentam mais tempo uma ereção, os que as tentam conhecer melhor.
Tenho ouvido aqueles programas, que agora se tornaram vulgares, em que miúdas de vinte e poucos anos falam destes temas com desenvoltura. Glorificam o Satisfyer, um brinquedo feminino, embalagem discreta, direto do fabricante, preferir o Pro. E em alguns casos chegam a dizer que um orgasmo assim obtido mete no saco qualquer rapaz aplicado. Acho possível, embora continue a preferir rapazes aplicados. Mas admito que dá um trabalhão. Sobretudo quando as pilhas se gastam e não sabemos como reciclar. Acho que o Satisfyer não é, ainda, a solução final. Quando descobrirem as vias que vão do clitóris ao SNC e construírem capacetes capazes de estimular diretamente os centros corticais, o Satysfier Brain substituirá o clitoridiano, com evidentes vantagens práticas e comerciais. Nesse dia seremos, já lá dizia o Alexandre O’Neill, que é do teu tempo, só mentira, só mental.
Hortense
*
Fausto,
Não consigo dormir. O Enrique mandou-me umas coisas muito estranhas. Aparentemente anda preocupado com a vida sexual das cadelas e dos cães. Nem sei que te diga, nem que lhe diga.
Penso que está desconfiado do que a biologia pode fazer aos homens, às mulheres e às pessoas não-binárias. Interpreto a sua preocupação à luz de dois fatores: a sua profissão e o terror das práticas associadas à desgraça do sexo na espécie humana.
Como sabes, o Enrique não é de falinhas mansas. É daqueles psiquiatras que não gosta de dourar a pílula (sendo que também anda interessado na pílula), e prefere a biologia “crua” à psicologia “suave”. Quando fala, confesso que não sei se é médico ou veterinário da nossa espécie. Este é um dos pecados da psiquiatria que se paga caro: a exterioridade que não lhe permite aceitar a sua própria condição humana.
É fácil desculpá-lo, pois foi formado na tradição, comprovada pela experiência de vários lugares e épocas, que ser mulher é sofrer as agressões de machos dominantes.
Até aqui é coerente. Mas ele complica: os animais é que são brutos, só a espécie humana é que é terna. Acrescenta assim uma estranha excecionalidade em que deixa de ser nosso veterinário para passar a ser nosso pastor.
Penso que confia demasiado no córtex frontal. Ao mesmo tempo, acha-o um mentiroso. Regressa ao corpo das mulheres para ter a prova física de que não mentem.
Tu conheces-me, sabes que eu adoro paradoxos e incongruências. Tornam tudo muito mais interessante e detectivesco. Mas não sei até que ponto ele aguenta. Repara no que tenho para lhe dizer.
Que a excecionalidade humana é realmente, em muitas coisas, um mito. Somos macacos e macacas, para o melhor e para o pior. E ser macaco e macaca não é necessariamente o nosso pior lado. O Robert Sapolsky ajuda muito com os seus estudos de babuínos, onde mostra como os machos agressores são contextuais. Onde observa as circunstâncias da violação no mundo animal. Onde mostra que nas espécies de primatas, os comportamentos de género não estão completamente determinados. As feministas viram claramente na primatologia como as investigações e interpretações eram conduzidas de forma a amacacar os machos e as fêmeas, a favorecer comportamentos agressivos que depois eram tidos como “naturais” nos primatas e estendidos a humanos, desculpados por mau design corporal e cerebral, dos quais só a civilização nos salva.
Infelizmente, a sexualização do ser humano foi sempre recebida com incredulidade. E sempre que fomos estudados por verdadeiros biólogos e zoólogos, como o Kinsey, não nos revimos nos estudos. Porque quem quer representar os interesses do córtex frontal tem outras agendas que considera melhores.
O Enrique lança algumas hipóteses notáveis. O orgasmo como uma seleção natural dos machos. Sabes que há exemplos noutras espécies capazes de vir em socorro? Há uns insetos adoráveis em que a fêmea faz uma verdadeira seleção sexual, só libertando o óvulo se estimulada devidamente. Que pena não sermos assim. Que pena engravidarmos em violações.
Em resumo: achas que lhe devo dizer que o que sabemos sobre comportamentos agressivos em animais vai muito além daquelas narrativas odiosas que passam nos programas de televisão? Que, por exemplo, nos estudos com aranhas, as obrigam a picar? Forçam-nas com descargas elétricas. Quem tem trabalhado estes temas é a filósofa e psicóloga Vinciane Despret.
Achas que lhe devo dizer que o córtex frontal não é o que nos separa da barbárie, mas que nos pode levar à barbárie? Que pessoas civilizadas procuram naturalizar, legitimar e propagar comportamentos tóxicos através do córtex frontal? Que pagam o preço de montarem fêmeas de forma cruel, bruta e curta, até um grau de objetificação tal onde já não importa a espécie, como aquela orangotango no bordel do Bornéu[1]?
Achas que lhe devo dizer que este não é o caminho da biologia, mas sim o caminho para uma inconsolável masculinidade, para a qual não há Satisfyers?
Morticia