Bits e Qubits
Propriedades quânticas da reprodução de gravações sonoras
para o Rui Miguel Mateus
Foi em 1860 que o parisiense Édouard-Léon Scott de Martinville
registou pela primeira vez uma voz
com um aparelho que tinha inventado:
o fonautógrafo.
O fonautograma então gravado,
uma voz cantando “Au clair de la lune”,
não podia contudo ser reproduzido
e ouvido de novo.
Foi preciso esperar quase 150 anos até que
em 2008 se encontrou maneira de reproduzir os fonautogramas
e ouvir finalmente
as primeiras vozes alguma vez gravadas.
O trabalho de recuperação dos fonautogramas
levantou desde logo uma questão importante:
a de saber se a voz era feminina ou masculina,
de uma criança ou de um adulto.
Consoante a velocidade de reprodução
a voz muda de sexo,
de idade,
ganha novos registos.
Essas diferenças expressam-se na duração de cada versão:
a feminina dura metade do tempo da masculina.
Trata-se de arqueologia sonora
e de uma discussão com variados pontos de vista
—mecânicos, acerca do modo e possibilidades de manipulação,
da capacidade tecnológica de gravação,
de enquadramento social e cultural —
que tem como objectivo o rigor histórico,
neste caso fazer com que a velocidade de reprodução seja igual à de gravação.
O problema é bem mais interessante:
é que um fonautograma, tal como um fonograma
ou mesmo um disco de vinil e tal como a própria voz,
são objectos com propriedades quânticas,
ao contrário de um CD ou de um mp3.
*
Tratar a informação armazenada num fonautograma, fonograma ou disco de vinil
como quântica,
surge da distinção entre bits
(que apenas podem ter o valor de 0 ou de 1)
e qubits de informação,
que são os “équivalents quantiques des bits,
qui peuvent être dans une infinité d’états,
correspondant à une combinaison des états 0 et 1.
La difficulté est de manipuler ces qubits sans les lire,
sinon ils se transforment en bits classiques” (Nielsen, 2010: 21).
Foi com este pressuposto que Benjamin Schumacher
(da Universidade de Gambier, Ohio)
apresentou em 2002 uma teoria da informação,
aplicável tanto à informação clássica como à quântica,
que se pode resumir em três pontos:
[…] l’identification d’une ressource physique,
l’identification d’une tâche de traitement de l’information
et l’identification d’un critère de validation de cette tâche.
Ainsi une séquence de bits est une resource physique:
bien que l’on considère généralement que les bits sonts des entités abstraites
(des 0 et des 1),
toute séquence de bits est encodée dansun support physique réel.
Un exemple illustre le deuxième critère:
la double opération de compression de l’information
issue d’une source (le texte d’un livre),
puis sa décompression,
c’est-à-dire la récupération de l’information originelle
à partirde la séquence de bits comprimée.
Enfin, la troisième étape
consiste à identifier un critère de validation
de la tâche realisée durant la deuxième étape. (Nielsen, 2010: 21).
É precisamente na terceira etapa,
ao procurar un critério que valide a recuperação da informação do fonograma,
que esta surge como estando numa infinidade de estados,
apresentando-se com características de qubits e não de bits.
Por fim, e não menos relevante, éo facto de os princípios da mecânica quântica
exigirem que a informação do qubit seja apenas uma unidade
(um ponto no cilindro, no disco) que não contém uma infinidade de bits,
mas contém em si mesma uma infinidade de possibilidades de extração em bits:
Les principes de la mécanique quantique
interdisent d’extraire plus d’un bit d’information,
quelle que soit l’habilité avec laquelle on code le qubit
ou l’ingéniosité avec laquelle on le mesure.
[…] un qubit contient de l’information cachée que l’on peut manipuler,
mais à laquelle on n’a pas accès.
On peut considérer cette information cachée,
non comme un nombre infini de bits classiques inaccessibles,
mais comme une unité d’information quantique. (Nielsen, 2010: 22).
Na realidade, no caso dos discos analógicos,
a repetição das condições de uma reprodução experimental
dão um resultado igual ou bastante semelhante,
o que parece contradizer esta informação quântica.
Mas a questão é que modificando as condições da experiência,
a mesma informação é lida de outro modo e dá um resultado diferente.
Mesmoa sequência de sons (subidas, descidas, pausas, inflexões)
é posta em causa
com a possibilidade de parar, atrasar, acelerar, arrancar e inverter
essa mesma sequência.
*
A primeira evolução do fonautógrafo,
superando a sua incapacidade de reproduzir som,
deveu-se a Thomas Alva Edison,
que criou o fonógrafo.
De facto, em 1877, Edison não apenas se gravou a si próprio
recitando “Mary had a little lamb”
—utilizando para isso um bocal cónico com uma membrana,
que transformava as vibrações sonoras em impulsos mecânicos,
e registando o som num cilindro revestido com folha de estanho,
que ele mesmo rodava enquanto falava,
no qual uma ponta aguçada, ligada ao bocal, abria sulcos —,
como conseguiu depois ouvir a gravação feita:
a membrana do bocal transformava igualmente
os impulsos mecânicos em vibrações sonoras.
A questão da equivalência entre as velocidades de gravação
e de reprodução mantém-se,
apesar de neste caso sabermos quem disse o texto
e a voz de Edison surgir como uma voz masculina.
Na verdade, não sabemos com precisão
a velocidade a que Thomas Alva rodou o cilindro no momento da gravação.
E, tal como nos fonautogramas
ou no scratching,
o suporte físico da gravação contém em si mesmo
várias possibilidades de reprodução.
Mesmo a ideia generalizada de que
um registo sonoro é um contínuo de frequências sonoras,
cujas variações reconhecemos como música ou poesia dita,
independentemente da precisão da reprodução,
é posto em causa com a técnica do scratching
—que usa o disco de vinil como instrumento musical,
alterando a sua velocidade de reprodução manualmente
e, ao mesmo tempo, invertendo e alternando
a sequência sonora original.
Friedrich Kittler descreve esta capacidade do fonógrafo de um modo bastante claro:
“a phonograph […] is able to record this chaos
[of exotic music assailing European ears]
in real time
and then replay it in slow motion.” (Kittler, 1999: 4).
Tal como o gato de Schrödinger,
que está vivo e morto simultaneamente,
o fonograma é ao mesmo tempo
masculino e feminino.
Só no momento de abrir a caixa e olhar para o gato,
no momento em que se roda o cilindro ou o vinil,
se saberá qual é o som produzido.
Estudar os cilindros para desvendar a voz original
é como querer saber se o gato era amarelo ou malhado.
Mesmo que alguém role o cilindro precisamente com a mesma velocidade
(e variações de velocidade) com que Edison o rodou,
quando o gravou,
nunca o saberá.
Mesmo sabendo que Edison era um homem,
não é possível conhecer a sua voz, apenas uma aproximação,
pois o fonograma contém um Edison tenor e um Edison barítono.
O problema solucionou-se aparentemente com a introdução de um motor
que permitia manter uma velocidade fixa
de rotação do cilindro (e mais tarde do disco),
tanto no momento da gravação
como no da reprodução de som.
Mas o suporte com a informação sonora (singles, LP, etc.) continuava,
mesmo assim, mesmo com motor,
a permitir várias possibilidades de reprodução de som.
Na rádio era necessário mudar a rotação dos discos que tocavam
(de 45 rpm para 33 rpm e vice-versa)
e por vezes havia alguns equívocos ao vivo.
A técnica musical de scratching tornou popular esta capacidade
até então pouco explorada
que o vinil sempre conteve:
tal como os seus antecessores,
é um objecto com propriedades quânticas.
*
Pois bem, então é assim:
do ponto de vista do suporte de informação sonora,
os formatos analógicos se caracterizam-se
pelas suas propriedades quânticas de tratamento de informação (qubits),
e os formatos digitais (bits) não
—aqui a informação pode ser alterada,
mas trata-se de criar um novo documento, um novo ficheiro
e não de utilizar todas as potencialidades de uma única gravação.
*
Noutra perspectiva,
Kittler olha para o modo como o tempo é registado e reproduzido,
recordando que
What phonographs and cinematographs,
whose names not coincidentally derive from writing,
were able to store was time:
time as a mixture of audio frequencies in the acoustic realm
and as the movement of single-image sequences in the optical. (Kittler, 1999: 3)
Mas, mesmo neste caso, a distinção entre formatos analógicos e digitais mantém-se,
uma vez que apenas os formatos analógicos,
apenas os qubits de informação,
têm a capacidade de manipulação do tempo,
que pode ser esticado, encolhido, invertido.
Os formatos digitais,
ao transformarem procedimentos analógicos em formalizações matemáticas,
eliminam toda a aleatoriedade (não matemática) na reprodução sonora.
*
Kittler também refere a transformação
da informação não quântica em informação quântica
olhando o modo como o tempo funciona
de maneira diferente em cada caso:
“Time determines the limit of all art,
which first has to arrest the daily data flow
in order to turn it into imagesor signs.” (Kittler, 1999: 3)
A arte é aqui vista como paragem do fluxo do tempo,
registando o momento
(em imagem ou som ou texto).
O texto escrito parou o tempo,
o texto dito necessita de tempo para existir.
O primeiro cristalizou-se,
apenas necessita de um código para operar os seus signos.
O segundo utiliza vários códigos na sua operação:
além de um código linguístico
que o torne compreensível,
usa também códigos musicais
que produzem modos convencionados de dizer, harmonias,
códigos interpretativos
que conduzem o modo como um leitor, ou um intérprete, diz um texto
numa ocasião específica,
códigos de reconhecimento
ouvir uma voz permite por vezes reconhecer a pessoa que fala ou diz ou canta
e até códigos corporais,
no caso de leituras e recitais ao vivo.
De um poema escrito ou se gosta ou não.
Mas o mesmo poema dito por duas pessoas,
pode ser agradável num caso e desagradável no outro,
“bem dito” por um e “mal dito” por outro.
*
Em 1890,Alfred Tennyson foi um dos primeiros poetas a ter a sua voz gravada,
registada para a eternidade.
Ainda hoje o podemos ouvir (existem gravações sonoras)
a dizer o seu poema “The Charge of The Light Brigade”.
É maravilhosa a interpretação de Tennyson,
e não apenas do ponto de vista histórico,
também como exercício de dizer.
E contudo, que dificuldade
para ouvidos habituados à comodidade de um “som limpo”…
Existem ferramentas tecnológicas
para “limpar” a gravação de todos os sons “indesejados”,
para tornar a voz mais perceptível em todas as suas matizes.
“Limpar ou não limpar, eis a questão”,
uma questão de museologia:
preservar as ruínas ou reconstruir.
Talvez o importante seja ser o mais fiel possível ao original
—mas tem de se perguntar sempre
o que é o original,
se o edifício ou a ruína,
se a voz ou a gravação que dela restou.
*
Em 1950, Sebastião da Gama publicou no Jornal do Barreiro
um pequeno texto “Sôbre a Poesia: Dois Dedos de Conversa”,
no qual propõe a utilização no futuro da voz
e da gravação sonora de poemas
para substituir o livro e a leitura
(geralmente solitária e silenciosa)
do texto poético.
Um amigo meu, revolucionário de raíz, pede
que sejam os versos gravados em discos em vez de impressos em papéis.
E tem ele muitíssima razão.
Os poetas fizeram os seus versos para serem ouvidos,
não para serem lidos;
ouviram-nos, antes de os lerem,
que é esse mesmo o milagre da inspiração.
Gravados, chegariam puros aos ouvidos do público,
tal como o Poeta os quis,
como o Poeta os soube. (Gama, 1974: 72-73).
Este pedido para que os versos sejam gravados em vez de impressos
é o da passagem de uma informação não quântica para uma informação quântica,
pois, tal como nos formatos digitais,
o texto impresso não pode ser modificado sem a criação de um novo texto,
ao passo que a voz se reveste de várias propriedades quânticas.
(Nota) Extracto (revisto e em verso) da minha tese de doutoramento em Materialidades da Literatura: Registos Sonoros de Interpretação Poética: análise dos modos de dizer poesia em Portugal, a partir das gravações em disco. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Setembro de 2015.