Por aqui o vento é cabeleireiro.
Por aqui o vigor é sem lactose.
No pavilhão X cada um se tornou no crime por que foi condenado.
Na enfermaria cada um é a doença de que há de morrer.
Escreve em sacos de cimento, pois as lágrimas evaporam-se e o papel limpo escasseia.
Escasseiam também os dias limpos de medo e escasseia o tempo, mais do que nunca. Escreve à velocidade com que pensa, sabendo que os seus pensamentos não terão futuro e que não verá as paredes que o cimento dos sacos ajudará a erguer.
Vive com a doença de que há de morrer. Tem a vida e a morte à luta dentro de si.
[foi o que ela disse]
Partilhamos olheiras.
Há uma luta dentro de si e nos seus olhos altamente eléctricos sobrevoa uma electrocussão.
Lá fora, os campos continuam de amarelo muito para lá da estação, como se a luta no exterior fosse ao contrário, o tempo se distendesse numa tentativa de compensação. O tal horror ao vazio, a queda para o equilíbrio, leis que a eternidade ainda não teve tempo de revogar. Se interromper a escrita e sair, talvez possa, com o confronto que por certo provocará, contribuir para progressos sensíveis no apuramento da matéria de facto.
(Escrito no cimento. Não sabem que nada sabem. Obedecem, logo existem. Fascistas.)
O bom tempo há-de chegar. As enfermarias ficarão vazias. E as linhas da cofragem do pavilhão X ficarão expostas como cartas escritas na pedra. São como os anéis das árvores e os ossos nas grutas: antes de reclamarem os estudos, encantaram.
Da minha janela via a enfermaria ao longe, pelo menos parte dela, por detrás do carvalho grande que tinha sobrado dos últimos abates. Contam que partiram três serras antes de desistirem. Aparentemente, recusava-se a morrer. Um dia voltariam, com armas mais potentes. Até lá, era um símbolo de resistência, uma guarda avançada da enfermaria.
Faço das tripas coração. De nada valerá o vento aqui ser cabeleireiro.
Sangue é a essência da tradicional receita de arroz de cabidela de pato, onde o arroz é cozido no sangue do pato, vinagre e temperos. Cozinha-se o arroz nessa mistura única para absorver todos os sabores e criar um prato rico e reconfortante, com uma história gastronómica única.
“Os ovos não podem ser de aviário. Por cada quilo de farinha de trigo acrescentam-se 300 gramas de açúcar, 100 gramas de manteiga, 50 de fermento de padeiro, sal q.b. e oito a nove ovos caseiros. Aromatizar com raspa de limão. A massa deve ser sovada, vigorosamente, à mão. Quem for crente deve benzer a massa para que ela cresça e, assim, assistir ao milagre da multiplicação. Fica a levedar até chegar o momento de cozer num forno a lenha, a uma temperatura que só os experientes sabem dosear. O sabor é o da Bairrada. Em Idanha-a-Nova não há folares assim.”
O cimento é embalado em papel de múltiplas folhas. Separa-as. Se não as separasse assim, não escreveria. Escrever é como separar as fibras da celulose. Enquanto as separa, balbucia as palavras que retratam a sua condição. É nessa altura que devia escrever. Separar o papel até ele não suportar senão uma camada de grafite. E acreditar que aquela folha pode apenas suportar aquela escrita. Papel e palavra inseparáveis, mãos e voz, ilegíveis para o inimigo, voltadas para um futuro leitor e invisíveis para os perseguidores que as destruirão, se suspeitarem da sua existência.
As folhas de papel são sempre mais do que parecem. Ficam finíssimas e perdem a cor acastanhada. Escreve com letra miúda, cada vez mais pequena, quase ilegível. Hão-de chamar-lhes criptogramas. Não. Microgramas. Chamar-lhes-ão microgramas. Escreve em quatro colunas, cinco, ocupando quase todo o papel disponível. Escreve com lápis. Por mais que tenha desflorado o papel, as folhas levantam, do cimento, uma leve poalha. Que ao poisar de novo, deixa as palavras empedradas.
Après tout, c’est à la mode
De saisir l’instant présent.
Et il n’y a rien de mal à ça
Dans cette grande Révolution
(Escrito no cimento. O silêncio. Os ventos brandos lentos, as brigadas bravas sob escolta, as febres, as serras e os martelos dos caixões. O silêncio dos que não racham, dos que resistem nas entrelinhas, como o sol persiste na intermitência das sombras das nuvens passageiras.)
Imagina uma laranja comida à janela. A laranja ali é uma cor em dissipação, uma luzinha na paisagem feita de cinzentos, castanhos, verdes térreos, escuros e esmaecidos. Um sol deplumado aos poucos. Um Ícaro no horizonte.
Mãos e cimento.
Mãos e papel.
Folhados de cimento.
Micropalavras. Empedradas.
Sem sentido emudece-se e desenha-se.
Escreve, dando o corpo às folhas. Corpo literário. A escrita é o cimento que liga tudo, que une as palavras soltas dentro de si. Escreve calado, mudo pela guerra que rebenta dentro do seu corpo. Quando as palavras não chegam, pousa a caneta e fecha os olhos. Levanta-se, caminha, estica as pernas, acorda os músculos. Vai à janela, abre-a, inclina-se sobre o vazio. Deixa que o vento o penteie: barba, cabelo, bigode. Encosta-se com força ao parapeito da janela, como se o quisesse empurrar para o mundo. Arranha a parede debaixo dele e sente-a desfazer-se com as unhas.
Barba, cabelo, bigode, unhas: quer acordar todas as células mortas.
Por baixo das unhas toda uma vida que se desconhece tamborila sobre o tampo da mesa de café como chuva em telhado de zinco. As crianças abrem a boca e apanham-na enquanto esmagam laranjas para que o gado graúdo as possa comer sem asfixiar. As mais velhas fazem-no com um golpe seco. O sumo salpica-lhes as pernas desnudas. A palidez contra a noite escura, as nuvens fecham o céu. Nem mais um camelo entra. Nem mais um deserto se atravessa, enquanto essas crianças recolherem das árvores seus frutos e dessas nuvens as águas revoltas. Deixai-as crescer à sombra, como dizia o escritor.
No final ficará o vento, apenas o vento. As folhas das árvores abanarão, as janelas baterão, a enfermaria estará vazia, tudo volteará no ar e ninguém ficará para ouvir o silêncio que se vai formar atrás do velho pavilhão agora deserto. Mesmo a chuva, quando cair, não molhará ninguém e o zinco encontrará a sua inutilidade prática; como a morte.
E pur si muove: nunca dito, muito escrito.
[O osso esquisito foi escrito, em duas voltas, por AMS, API, CJ, DB, FF, FM, HB, LJ, LLP, MM, RAS e RVS.]